Blur, “Bettlebum”, in https://www.youtube.com/watch?v=WAXnqjUfal4
Desacerto, com a consciência da finitude e ouso a reconstrução. Meto as mãos na terra, no mais fundo a que chegam, e revolvo-a. Trago as mãos imundas à superfície, as unhas encardidas de tanto remexerem a terra, e sinto-as puras como nunca estiveram. Aceito o seu estado. Serão sempre mais limpas do que as mãos dos que se deixam seduzir pela farpela corrupta.
Um desacerto: tomo consciência do jeito sem jeito e não concebo retificação. Não lamento o passo desacertado nem encomendo a culpa algures. A desvirtude está em mim. Assumo-a. Conglomero os vestígios do desacerto global, só para sua inventariação. Não intuo a necessidade de escrever um manual de instruções para conviver com a proverbial inépcia para as coisas comezinhas, por exemplo, a comunhão social, o protocolo, a covardia, a avareza, ou a desonestidade.
Um desacerto, que não é pago para ser corrigido. Não é comodismo. É instintivo; e sempre ouvi dizer (e vi escrito em livros recomendáveis) que o instinto não se contraria. Desacerto das linhas diretas por que se costuram os grupos à minha volta. Desacerto da identidade forçosa, como se a liberdade não passasse de uma figura de estilo. Desacerto das negociações escondidas que avalizam confrades em posição de relevo. Desacerto das posições de relevo. Faço questão de não desacertar do princípio geral do anonimato que é o fato à (minha) medida. Desacerto dos aprumados próceres de ideias que se põem ao seu serviço e, se preciso for, caem no ridículo só para as defender. Desacerto das personagens que se julgam sabedoras de todas as ciências. Desacerto da ignorância disfarçada de soberba. Desacerto da desonestidade intelectual como arma contra oponentes (e, mais ainda, se medrar como cimento dos arregimentados). Desacerto de um punhado de palavras que tenho por proscritas, sem soar a preconceito, apenas como sinal de tensão estética irrecusável.
Cumpro os desacertos com uma lógica metódica. Não transijo. Creio poder afirmar que me orgulho de ter um punhado de preconceitos; os desacertos movem-se através das linhas tracejadas de onde sobressaem os desacertos. E não tenho medo de, mais tarde, desacertar de um desacerto cronologicamente anterior. Os desacertos não são matéria estática.
Antes não me deite a fazer um paciente inventário sobre os desacertos havidos e os que continua a haver. Não seria uma página brilhante da minha biografia.
Sem comentários:
Enviar um comentário