17.10.19

Daqui a nada (short stories #166)


Kim Gordon, “Hungry Baby”, in https://www.youtube.com/watch?v=paKCImP-IOk
          “Dizer ‘daqui a nada’ define um paradoxo. Tem um lado potencial: as possibilidades que se abrem na incerteza do futuro que está a um instante de se cumprir (ou não). São as juras alinhavadas no espectro admirável que o tempo desconhecido contempla. Uma janela aberta aos rostos sem o prejuízo da melancolia. Dizemos ‘daqui a nada’ sem povoarmos as palavras com o odor pútrido de um adiamento. É daqui a nada que um algo está para ter lugar. E esperamos que o nada se consuma para o tempo ganhar o seu lugar e, por fim, sermos penhores ou atores da sua quimera. Daqui a nada pode ser a repetição de um prazer. Ou pode ser a inscrição desse prazer nas atas do futuro. É projetar o tempo presente para uma outra dimensão que se adelgaça na fina espessura de um nada. Está quase ao alcance das mãos, apenas à espera que o efémero nada se consuma. Dizer ‘daqui a nada’ é a celebração do efémero, o néctar que habita nos cálices que não nos cansamos de erguer em feérica celebração da vida. Mas dizer ‘daqui a nada’ também contém a negação do seu enunciado: literalmente, dizer ‘daqui a nada’ é uma expressão que se esgota no vazio que promete. Daqui a nada não é coisa nenhuma. É um nada. E num nada não se obtém o vencimento do que quer que seja. Em dias de monotonia, ‘daqui a nada’ soa à jura do não acontecido, como se já fosse possível antecipar, como adivinhação, o que se oferece ao horizonte no dealbar do ‘nada’ que o separa do ‘depois’. E eu fico sem saber se ‘daqui a nada’ é uma possibilidade potencial ou a decadência da capitulação. Sempre que me lembro e vou a tempo, prefiro não dizer ‘daqui a nada’. A indecisão é uma espada que adeja sobre a lucidez.”

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