3.10.19

Hermenêutica (short stories #162)


Spoon, “The Underdog” (live at Main Square Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=2NUPwS701yI
          Um par dançante, duas palavras que são primas próximas: a clave de sol que as enlaça perfuma a noite como se ela não fosse o domínio das trevas e dos fantasmas não houvesse notícia. Aproveito o pesar que se arqueia sobre as sobrancelhas pesadas das pessoas. Não avanço com as palavras soturnas. Prefiro largar âncora num mar remoto, longe do mapa, onde os navios habituais não se aventuram. Prefiro palavras estranhas, sem querer saber se elas são manifestação ufana de erudição (porque sei que não são): obnóxio, parafernália, osmose, alquebrar; e uma, a preceito e não erudita: corrimão. Ensaio uma coreografia com as possibilidades da hermenêutica. Aproveito o leve bater de asas dos pássaros que esvoaçam no céu que pesa sobre os meus ombros. Meto os dados às possibilidades: é meu corrimão a parafernália de apetrechos em que se fundeiam os obnóxios, deixando-os alquebrar na sua própria osmose, a liquefação em que se decompõem. Não cuido do incómodo que os obnóxios poderiam causar. Olho para o lado. Para a hermenêutica paralela, uma das possibilidades, em que recebem nova unção as palavras que não se hipotecam. Faço uma separação higiénica. Despromovo a palavra que arrasta uma feição sombria (obnóxio). Retenho as demais. Recomponho a frase: no corrimão do dia, as pessoas recusam a osmose, são a prova da sua particularidade, não alquebram perante a parafernália de seduções que procuram convencê-las que são semelhantes. O regimento não se prende a convenções, e as palavras servem para as desafiar. E se noto o pesar que se arqueia sobre as sobrancelhas pesadas das pessoas, sei que as palavras epitáfio não têm serventia. Arrumo-as a um canto e decreto a sua infecundidade. Antes as palavras que se desembrulham do seu próprio sortilégio, dissolvidas nos poemas que nunca são tardios. Pois é a poesia que desata os nós da linguagem que sintetiza as convulsões dos sentidos. E as pessoas sobrevivem aos sobressaltos, superando-se aos nomes que carregam os encargos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei o texto.