This Mortal Coil, “Strength of Strings”, in https://www.youtube.com/watch?v=usYEImDgztM
Havia uma cancela que nunca atravessou. Torneava a cancela, metendo por um caminho pedregoso, alcantilado, onde por vezes o fado estava por conta de uns infames gatunos. Esteve tantas vezes defronte da cancela, a ganhar coragem para a atravessar, ou apenas a estimar, em cálculos demorados, se os custos da empreitada não transcendiam os ganhos. Recuava sempre. E metia pelo caminho pedregoso, alcantilado, onde, apesar do estigma (é o que faz dar atenção ao “diz-se que”), nunca fora assaltado.
A cancela estava sempre fechada. Nunca viu passar o comboio, uma única vez, para amostra. Havia os carris, as tábuas de madeira que eram a balaustrada exigível para as composições não descarrilarem, os seixos de granito, desiguais, fazendo a cama da linha férrea. Havia até aquele odor característico a fumo (convencionara chamar o “fumeiro ferroviário”). Mas de comboios, nem sinal. Nunca perguntou às pessoas que vivem nas imediações se os comboios ainda circulam. Nunca viu ninguém nas imediações.
Se os comboios já não habitavam a linha, por que ainda não tinham retirado os carris e as tábuas e a cama granítica? Seria sinal da circulação de comboios. Podia até ter acontecido que, em todo aquele tempo (e já eram uns anos), nunca tivesse coincidido com um comboio circulante. Assim como assim, nunca se detivera à frente da cancela mais do que cinco minutos. Era um ramal secundário, possivelmente. Com escassa circulação. Recordava-se de notícias sobre o emagrecimento dos caminhos de ferro. Já não era um transporte em moda. Nestes tempos de cálculos económicos sobrepondo-se ao demais, os comboios eram uma fonte de prejuízo. Além disso, não estudou a rede ferroviária nos bancos da escola; não podia atestar se a linha pertencia à rede principal ou se era um ramal despromovido. Só sabia que encarava sempre a cancela descida, o que costuma acontecer quando os comboios estão próximos ou acabaram de passar, e nunca pressentira um comboio em aproximação, ou notara o seu cavalgar, matraqueando as juntas dos carris, numa sonoridade que se esbatia à medida que o comboio se distanciava da cancela.
Ao fim deste tempo todo (e já eram uns anos) ainda sem ter travado conhecimento com um comboio, reparou que a cancela envelheceu. Está enferrujada, baça, com pedaços de tinta descascada, deixando à mostra uma camada de ferrugem. A trave abaulada prova a decadência da cancela. Decidiu: a cancela decadente deixou de ser um embaraço, já não entranha um medo lúgubre que é o aparecimento de um comboio sem pré-aviso, avançando velozmente.
Escolheu este dia para avançar a cancela. Se ela apenas faz figura de corpo presente, tinha de saber o que está do outro lado. A curiosidade do desconhecido levou de vencida a temerária precaução. Atravessou a linha. Do outro lado, a cancela estava mais degradada. A ferrugem conquistara terreno à tinta, quase só se vendo uma mancha de ferrugem. Já sabia o que existia do outro lado da cancela. Distraído por pensamentos distantes, só deu conta da passagem do comboio quando o corpo foi empurrado pela corrente de ar. Ainda foi a tempo de ver, por uma nesga do olhar, uma composição de uma meia dúzia de carruagens a rasgar os carris. Só não sabia se era um comboio ou uma alucinação do pensamento.
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