Iggy Pop, “Loves Missing”, in https://www.youtube.com/watch?v=7bgndW7enwE
1.
Era esperado. Tudo era esperado. Era como se tivessem banido do vocabulário a palavra “surpresa”. Em vez disso, as pessoas andavam curvadas. Parecia que indagavam algo que estivesse pelo chão, um sufixo para acrescentar um nó às palavras.
2.
O tenente saiu da esplanada. Estava “à civil”. Podia-se comportar como um civil, sem o rigor espartano das regras castrenses. Decidiu: aquele dia estava mesmo a preceito da irreverência, das desregras. Foi à mala do carro e tirou uma cabeleira e uma barba, fartas. Não podia iludir as regras com o rosto descoberto. Passaram horas e o tenente continuava abúlico. Não conseguiu combater uma voz interior, superior, que suplicava pela manutenção da ordem. Em todo aquele tempo, não ouviu a voz da insubmissão. Acabou em casa frustrado e contente, ao mesmo tempo.
3.
Um dizia: “eu sei de coisas...”. O outro não ficava atrás: “também eu, também eu...” E o primeiro insistia: “não me provoque vossa excelência, que eu sou capaz de uma loucura.” “Diga lá, que loucura é essa?”, reagiu o outro. “Sei coisas sobre si...coisas...coisas...que o deixariam envergonhado.” (A parte final da frase soltou-se, desenvolta; mas não deu conta que fraquejava ao entoar o verbo no condicional: “deixariam”.) “Esteja à vontade. Não sei o que de mim sabe. Eu sei o que sei de vossa excelência. E não é decoroso.” Com medo da derrota, os dois embainharam a espada. Preferiram um empate. Ninguém tinha nada a ganhar.
4.
A jogadora de ténis não sabia explicar por que perdeu o autocarro que a fez perder o torneio por falta de comparência. Adormeceu, ou o despertador não despertou a horas – já nem queria saber. Os telefones não funcionavam. As ruas estavam estranhamente desertas. Não havia táxis. Não havia pessoas. Admitia uma conspiração. A sua arquirrival arranjou uma conspiração. É mais fácil ganhar sem suor.
5.
O farol zunia insistentemente. Furiosamente. O som grave, tão grave que arranhava o estômago das gaivotas, queria penetrar o denso nevoeiro. Os navios à ilharga agradeciam o serviço público, por cortesia. Só por cortesia. Com as modernas tecnologias, os navios vão de olhos fechados até ao cais.
6.
Teria sido uma meia dúzia. Os estroinas, em bando, derrubaram uma velhinha. Pecúlio do assalto, devidamente anotado por um polícia contrariado, à espera que a reforma não demore: um cordão de ouro, a carteira, contendo metade da reforma levantada de manhã nos correios, e umas publicações que o decoro impede de arrolar para os autos.
7.
Não havia matriz do destino. Que palavra inditosa! Quem inventou o destino? Alguém perguntou: “tens noção do teu destino?” Respondeu, sem disfarçar o cinismo: “tenho. Como tenho do futuro. Tenho um oráculo infalível!”
8.
O clima era temperado. Os habitantes não se cansavam de o apregoar. Chamariz no inverno para os que detestam o rigor da invernia. Atrativo no verão para os que fogem de climas tropicais. O clima era temperado. Mas a água do mar era sempre fria, todo o ano.
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