Thomas Dolby, “Airwaves”, in https://www.youtube.com/watch?v=D_3qtYjjmfg
I
Um assador de frangos. Não o material – onde se assam os frangos -, mas a pessoa que tem a incumbência. O suor escorre pelo rosto. Parece que a pele está embebida na gordura que transpira do carvão, que por sua vez recebe os restos de gordura dos frangos em pleno processo de serem encomendados ao domicílio. Pergunta a rapariga de boas famílias, que naquela noite não lhe apeteceu preparar o repasto e teve um acesso de recolhimento junto das classes populares: quando tomará banho o assador de frangos?
II
O escritor afamado não tem carta de condução. Faz-se transportar em táxis (ainda não aderiu à Uber; o conservadorismo irreparável não o consente) e em carros de amigos, quando os amigos estão com ele. Um dos amigos disse-lhe, no fim de uma noite bem bebida, que ele nunca podia ser campeão de ralis.
III
Alguém há de haver em Auckland, quando lá amanhece e aqui a noite ainda se prepara, que esteja a passear o cão e a recolher os dejetos com uma luva-saco e a pensar no pequeno-almoço e a contemplar a luz ainda desmaiada que desponta da alvorada recém-nascida. Alguém há de haver em Auckland que não ligou a televisão enquanto tomava o pequeno-almoço, folheando um livro de poesia retirado ao acaso da estante apodrecida.
IV
Um marinheiro acorda a destempo. Foi dia de os embarcadiços virem a terra. Boémia, como convém a quem passa semanas ser pôr a vista (e os pés) em terra. O marinheiro sente-se um corpo estranho. Não sabe que cama é aquela. Não sabe como foi parar àquela cama. Um corpo estranho, talvez. O marinheiro soergue a cabeça, vagarosamente. Antes tivesse ficado no convés a apreciar o desassossego da cidade, ao longe.
V
O ministro foi visto a desoras num estabelecimento noturno com má reputação. Os denunciantes foram os jornalistas que tinham sido avisados para a presença irregular de um jogador de futebol. O ministro nunca teve sorte na vida (nem quando aceitou ser ministro, que não esta não é a pasta que sempre ambicionou).
VI
A árvore centenária tinha tanto para contar. Não chegavam os seus grossos ramos, se fossem transformados em papel, para receber os testemunhos que a memória da árvore centenária armazena até ao tutano.
VII
O músico muito conhecido foi ao restaurante a uma hora em que já ninguém vai almoçar. Entrou de óculos escuros e assim esteve o tempo todo. Ausente, contristado, a comer com um certo laivo de enjoo – não dava para saber se lhe desagradava o serviço do restaurante, ou se estava indisposto. Uma adolescente simplória chegou-se ao músico, timidamente. Perguntou se podia tirar uma fotografia com o músico. O músico anuiu, visivelmente contrariado. O empregado de mesa, convocado à posição de fotógrafo, ficou com inveja. Ficou por saber-se de quem.
VIII
Na estação do metro, as pessoas refugiaram-se da chuva que começou, súbita e torrencial, a cair naquela parte da cidade. O mimo que atuava num corredor da estação, acompanhado por uma dançarina esquálida, benzeu a intempérie e fez o dia.
IX
O padre lia um livro no alfarrabista. Uma versão antiga de um livro qualquer, que as letras miudinhas não permitiam saber o autor e o título. O revolucionário foi tomado de assalto pela curiosidade. Queria saber os gostos literários do cura. Esperou, fingiu-se interessado pela secção de arquitetura, deambulou pelo alfarrabista. Até que, cansado, saiu. A impaciência derrotou-o. Se esperasse mais dez minutos, veria que o padre estava entretido a ler um livro de elevado teor erótico.
X
As empregadas domésticas palreiam, com abundância e elevados decibéis, enquanto tomam o café e esperam pelas sete e trinta horas da manhã, hora de pegarem ao serviço. Comentam tudo o que se passa no noticiário da manhã. Uma delas protesta, ao saber da notícia de um homicida que foi solto da prisão antes do tempo e reincidiu na matança acompanhada de soez violação da vítima: “porco, haviam de te castrar”. Ato contínuo, o deputado da extrema-direita entrou no café para comprar tabaco.
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