4.10.19

Teoria geral da classe média (short stories #163)


Conan Osiris, “1Rio”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZiwK5dfFPbg
          Exultação: agora és da classe média. Subiste a pulso. Não interessa se a ascensão foi meritória ou com a ajuda da trapaça. Subiste. Saíste do pardieiro em que viveste a infância e a adolescência – e talvez assim se entenda porque omites os teus pais. Agora passeias a ostentação de um breviário de consumo. Olhas por cima do ombro para os que foram da tua igualha. Não é de estranhar, nunca soubeste o significado de solidariedade (a não ser quando exigias que fosses seu destinatário). Tens um apartamento remediado. Decorado com exuberância. Os réditos estão na inversa proporção da estética. Dantes medravas na exiguidade, agora os proventos permitem a exuberância sem teres afinado a agulha com os padrões estéticos. Já vais a restaurantes. Continuas a não saber de etiqueta, esse judicioso estalão da burguesia irritante a que, todavia, cobiças pertencer. Continuas com modos boçais à mesa. Tratas os empregados de mesa com arrogância, como se julgasses pertencer a uma aristocracia apenas imaginada na tua cabeça. Desenhas uma fronteira nítida no horizonte: de um lado, os que são servidos à mesa; do outro lado, os serviçais. Quem vai a restaurantes – os teus réditos permitem-no – é servido pelos serviçais. Estes têm de ser tratados a preceito. É proibido juntar a expressão “por favor” quando encomendas a refeição. Continuas a não saber o que é arte. Nas vagas ocasiões em que a arte sonda o teu perímetro, destinas-lhe um tratamento desdenhoso (“a arte é um capricho dos endinheirados”). Fazes férias fora de casa. No Algarve, como acontece com a classe média e com um punhado de membros da burguesia mais endinheirada. Ainda não tinhas decidido se queres subir mais um degrau, antes de leres a lição de um sociólogo conceituado: pertencer à classe média é estar na terra de ninguém (um dos resíduos da crise recente). Agora que já tinhas escalado ao patamar da classe média, tens de pensar numa estratégia para subir um degrau. Parece maldita, esta tua sina de fugir da miséria, com a miséria mental sempre a acossar.

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