21.10.19

O litro é a medida da indiferença?


Duel, “Propaganda”, in https://www.youtube.com/watch?v=cqAvuL1-aGA
      As pessoas dizem, com a melhor nódoa de desdém que conseguem encontrar, enquanto encolhem os ombros: “é igual ao litro”. Dizem-no com o propósito de identificar uma paridade entre o litro e a indiferença. 
Falta saber se alguma comissão de harmonização internacional determinou que a indiferença se mede pelo estalão de um litro, como acontece com as comissões que harmonizam medidas para o mundo inteiro. Falta saber de que líquido se fala quando se evoca o litro como medida da indiferença. Não é de somenos importância. Um litro de vinho não vale o mesmo que um litro de água. E, entre os vinhos, a diversidade impera, tal como a qualidade e os preços de uma garrafa de bom vinho. Até nas águas as há de diferente calibre. Nem vale a pena mencionar a imprestabilidade da comparação entre diferentes líquidos. Beber um litro de vinho de uma assentada não é inóxio como beber um litro de água, como atestará o fígado se a experiência se repetir com assiduidade não recomendável pela Organização Mundial de Saúde. E beber um litro de água mineral não produz os mesmos efeitos de um litro de água bacteriologicamente impura. A comissão internacional de harmonização que terá estabelecido o litro – um litro – como medida da indiferença ter-se-á esquecido de adicionar o líquido em causa e de o identificar.
Talvez não o pudesse fazer. O mesmo líquido oferece-se a reações diferentes de pessoas diferentes. Nem será preciso cotejar diferentes culturas. No mesmo ambiente cultural, há quem seja apreciador de vinho e há quem não dispense a água, não a trocando por uma garrafa de bom vinho. Para pessoas tão diferentes, a medida da indiferença tem de reproduzir a sua antítese por uma determinada medida líquida. Admite-se que os apreciadores de vinho que usam a água apenas para a higiene pessoal e para a lida da casa não se importem de adicionar a palavra “água” quando evocam “um litro” como critério da indiferença. E o contrário para os que elegem a água como bebida principal: para eles, o vinho é indiferente e a medida da indiferença quadra com um litro de vinho.
Causa perplexidade a nomeação do litro. Ninguém saberá dizer por que motivo a indiferença se atinge quando se alcança o litro, e não antes. Ou podia o critério ser mais exigente e trazer à colação uma medida que fosse superior a um litro. Se calhar, não houve nenhuma comissão internacional de harmonização metida pelo meio, e tudo isto se resume a uma expressão idiomática, idiossincrática.
A expressão idiomática parece ser um equívoco. É verdade que um litro é sempre igual a um litro, da mesma forma que um litro e vinte e quatro centilitros é sempre igual a um litro e vinte e quatro centilitros, desde que o conteúdo comparado seja o mesmo. A indiferença, essa, é que varia: entre as pessoas e a sua sensibilidade aos assuntos candidatos à palma da indiferença; às circunstâncias que dão lastro às reações no momento; à valoração dos líquidos imprescindíveis para emprestar coerência à ideia de ser igual ao litro como medida da indiferença. 
Como o valor atribuído (aos líquidos capturados num litro; e às vicissitudes que se candidatam à palma da indiferença) é subjetivo, também o coroar de uma indiferença o é. Até porque, em alguns casos, a indiferença a que se vota alguém ou algo exibe um efeito paradoxal: remeter alguém ou algo para os domínios da irrelevância é a prova do seu contrário.

Sem comentários: