15.10.19

Pluviómetro


Heaven 17, “Let Me Go”, in https://www.youtube.com/watch?v=pJrU9RIurFE
É no aconchego da chuva que se embebem os corpos interiores. São como um pluviómetro: não deixam ao acaso nenhuma gota precipitada. Dir-se-ia que são corpos fora do comum. As pessoas (exceto os agricultores e um punhado de gente com mau feitio) não gostam da chuva. Não era o seu caso. Talvez fossem penhores do mau feitio.
As pedras cinzentas da estatuária não retêm a chuva. Pode-se observar as gotas a escorrerem pelos recantos das estátuas à medida que a chuva se demora. As estátuas não são corpos viventes. Não se embebem na chuva mirífica. Os corpos que se deixam ungir pela chuva apreciam as estátuas por onde escorrem as suas gotas acabadas de precipitar. Não abjuram as estátuas espalhadas pelo jardim. Sabem que não podem contar com estes cúmplices para a oferenda da chuva. Os corpos são como são. Os inertes, como é próprio da estatuária, não foram feitos com poros para deixarem a chuva entranhada. 
Os dois olham para os agasalhos. As gotas teimosas descem pelo tecido, lambendo a sua superfície, e deixam um rasto no chão que ambos deixam para trás. Chuva em cima de chuva. O tecido é impermeável – não se pode atestar que tenha sido uma observação transcendente. Percebem que têm algo em comum com a estatuária do jardim. O que abona em favor das estátuas. Os adoradores dos corpos encharcados não podem vituperar as estátuas. Por mais que sejam adoradores da chuva, não são desassisados para andarem nus no acolhimento da chuva quase esquecida. E não é pelo embaraço inestético da nudez; a chuva tão embebida nos corpos nus seria fautora de moléstias.
Continuam a demanda, sem trajeto escolhido. Vão errando pelas ruas enquanto sentem a chuva a deixar os cabelos molhados, cada vez mais molhados. Quando chove mais, notam as gotas a escorrerem céleres pelo rosto, até entrarem, algumas delas, por uma reentrância junto ao pescoço. Não se demovem. A cor quimérica do entardecer caldeado pela luminosidade esbatida da chuva persistente merece um olhar atento, demorado. Por mais que os corpos se embebam na chuva interminável. Parece-lhes uma bênção. Sem deuses por perto. A cor quimérica merecia ser emoldurada num retrato ou num quadro. Nenhum deles está à altura da exigência. Limitam-se a ser pluviómetros em andamento.
Chegam a casa. Em linguagem corrente: estão ensopados. Não é um contratempo. Sabem que o aconchego está à sua espera. A chuva foi só um pretexto para ativarem o aconchego.

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