22.10.19

Segunda, ou terceira, pessoa


Poolside, “Feel Alright”, in https://www.youtube.com/watch?v=bd1GDyHiICU
      Um incrível desdobramento: em vez de falarem na primeira pessoa, tomam de assalto a segunda, ou até a terceira, pessoa. Como se houvesse neles uma perplexa intenção de se evadirem da sua personalidade.
O fautor não assume o discurso direto. Fala de si na terceira pessoa. Como se estivesse a ver-se de fora de si mesmo e assim estivesse em condições de empregar a terceira pessoa para falar da sua conjeturada pessoa. Deve ser mais confortável. Não assumir dores que são próprias, evadindo-se da sua pessoa e passando a ajuizar-se através de um cómodo patamar que não lhe diz respeito, mas acaba por lhe dizer respeito, fazendo de conta que não. Pode-se tratar de uma figura de estilo; ou de uma representação que transcende os limites da pessoa de que se fala, sendo preciso deitar mão de uma personagem exterior para tudo nele conter; ou, ainda, uma distorcida maneira de usar um espelho, virado para o exterior de si, onde se projeta a imagem exterior que foi arregimentada por convenção dos desembaraços. Neste interminável jogo de espelhos, corre o risco de perder o fio à meada nos submúltiplos das terceiras pessoas que tiver convocado para a constelação de espelhos.
Ou então, emprega a segunda pessoa como sinal de autorreferenciação. É quando fala de si aos outros, usando-os como pessoa ao espelho da sua própria pessoa. Admita-se que se trate de astúcia retórica para reforçar a mensagem junto dos destinatários e a sua persuasão. Eles são trazidos para junto da sua pessoa, o uso da segunda pessoa não como impessoal medida dos seus atos e pensamentos, mas como convite para os outros se embeberem por dentro dos atos ou pensamentos de que foi tutor. Como se os outros tivessem de ser ele próprio. 
Não é agradável estar na posição de interlocutor quando ele nos usa para sermos ele próprio. São destinados ao malogro os esforços para romper com este mecanismo de comunicação. A certa altura, de tanto usar a segunda pessoa, é como se, por passe mágico equivalente a um hipnotismo, fôssemos a personagem que nos põe no seu lugar. Ser sermos ele, é como se assumíssemos as dores que ele enjeita.
Tenho uma posição de princípio como os que se acobertam na segunda ou na terceira pessoa: desconfio (e nem sou propenso à desconfiança). Desconfio, porque não concebo que haja quem julgue que não cabe dentro de si próprio. Desconfio, porque é um ato covarde que enjeita responsabilidade. E não quero ser arrastado para fora de mim, pois já me chega o que tenho de mim mesmo. Acho intrusivo ser expropriado da minha personalidade por quem a usurpa por convenção dos seus desembaraços. 
Depreco poupança, em sublime ato de generosidade, aos que se transcendem para uma putativa terceira pessoa, à falta de saberem conter toda a sua ufana gesta dentro da primeira pessoa. Que é a que lhes compete. 

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