Este mundo continua a oferecer coisas insólitas. Há sempre mais uns pozinhos que se adicionam ao impensável. A credibilidade das instituições mede-se também pela tendência de asneirar (numa medida de proporcionalidade inversa). Porventura desnorteada pelo andar dos tempos, e por se sentir cada vez mais desfasada do mundo que existe, a igreja tem-se destacado na arte da tolice. Uma infindável série de tiros no pé, para deleite dos adversários.
O papa falou às hostes por ocasião do novo ano. Da lição de moral constava uma referência ao aborto. Na prédica, Bento XVI comparou o aborto ao terrorismo. Caso não o tivesse lido, era motivo para destapar os ouvidos da cera acumulada e escutar outra vez para certificar que aquelas foram as palavras proferidas. Como se tratou de palavras lidas, a necessidade de esfregar os olhos e reler, uma e outra vez, para ter a certeza que aquilo foi mesmo dito por sua eminência.
As mulheres que praticam o aborto são comparadas a terríveis terroristas que levam a vida de inocentes com a detonação das bombas que covardemente espalham. É uma discussão infindável, a que envolve os partidários e os adversários do aborto: saber se o feto é vida humana, e a partir de que momento o embrião é considerado ser humano portador de direitos que assistem às pessoas. Não merece a pena embrenhar nessa discussão, que para o caso é estéril (para quem, como eu, acredita que o aborto não é referendável por se tratar de uma questão de consciência individual – da mulher que transporta o feto no útero e do pai que o fertilizou). O simplismo da comparação papal é um golpe oportunista: tal como as vítimas do terrorismo são pessoas inocentes, também os embriões alojados no ventre materno são inocentes a quem as mulheres decepam a existência quando decidem abortar.
Para além de golpe oportunista, é um enviesamento mental. Não há como comparar o que não é comparável: ao nível da violência usada no terrorismo, que não está presente no aborto; o terrorismo leva vidas de pessoas a quem é reconhecida, de forma incontestável, personalidade jurídica, enquanto os fetos que nidificam no ventre materno não têm essa autonomia, são dependentes da mãe que os hospeda; e porque o aborto não é homicídio, como acontece com os resultados do terrorismo. A desorientação da igreja mostra a sua anacrónica veia. Colocar ao mesmo nível aborto e terrorismo pode apaziguar crentes e adversários da legalização do aborto. Com o custo, muito elevado, de não perceberem que escorregam para a desonestidade intelectual. Desnorte que chegou ao ponto de um alto representante da diocese do Porto ter comparado o aborto com a “roda dos meninos” que se praticava em tempos medievais.
Que seja urgente arregimentar as hostes perante os desafios que a igreja não consegue vencer – nomeadamente, viver a compasso do tempo que corre – é compreensível. Contudo, os devotos católicos são educados para a não contestação dos dogmas. Decerto não terá sido aos fiéis que a mensagem se dirigia. A prédica papal teria como destinatários os que começam a hesitar na fé e as ovelhas tresmalhadas, não crentes que a todo o momento podem ser resgatados para o rebanho. Só que o ardil é um lamentável equívoco. Funciona ao contrário do pretendido pela hierarquia eclesiástica. Se estão convencidos que é com estratagemas deste calibre que engrossam o rebanho, estão enganados. Terá o condão de afastar os que duvidam e de reforçar as convicções dos que estão nos antípodas da fé católica. Interrogo-me até se, à escala doméstica, não terá efeitos contrários aos pretendidos: falo por mim, que no dia do referendo não irei visitar a sala onde o meu voto pode ser depositado; mas, ao ler estas reacções desorientadas da igreja, sinto uma súbita pulsão para votar sim.
A retórica é uma arte sublime. Quando se perde em chavões ditirâmbicos, ou quando resvala para a imbecilidade, sobram pessoas de cabeça perdida (há que convir, não se trata de pessoas desprovidas de inteligência). Bento XVI, que por encabeçar a igreja católica tem especiais responsabilidades, devia ter a sensatez de medir as palavras. Para não passar a imagem de um terrorista intelectual que amedronta ignaras mulheres que já praticaram o aborto e que, por devoção, hão-de carregar até ao fim da vida o peso do supremo pecado sancionado pelo papa. Isto é terrorismo mental. O seu fautor é um terrorista que armadilha as consciências de quem fica preso às amarras da angústia, depois de escutar as sempre sábias palavras papais.
O que falta ao papa (e à igreja em geral)? Um consultor de marketing...
O papa falou às hostes por ocasião do novo ano. Da lição de moral constava uma referência ao aborto. Na prédica, Bento XVI comparou o aborto ao terrorismo. Caso não o tivesse lido, era motivo para destapar os ouvidos da cera acumulada e escutar outra vez para certificar que aquelas foram as palavras proferidas. Como se tratou de palavras lidas, a necessidade de esfregar os olhos e reler, uma e outra vez, para ter a certeza que aquilo foi mesmo dito por sua eminência.
As mulheres que praticam o aborto são comparadas a terríveis terroristas que levam a vida de inocentes com a detonação das bombas que covardemente espalham. É uma discussão infindável, a que envolve os partidários e os adversários do aborto: saber se o feto é vida humana, e a partir de que momento o embrião é considerado ser humano portador de direitos que assistem às pessoas. Não merece a pena embrenhar nessa discussão, que para o caso é estéril (para quem, como eu, acredita que o aborto não é referendável por se tratar de uma questão de consciência individual – da mulher que transporta o feto no útero e do pai que o fertilizou). O simplismo da comparação papal é um golpe oportunista: tal como as vítimas do terrorismo são pessoas inocentes, também os embriões alojados no ventre materno são inocentes a quem as mulheres decepam a existência quando decidem abortar.
Para além de golpe oportunista, é um enviesamento mental. Não há como comparar o que não é comparável: ao nível da violência usada no terrorismo, que não está presente no aborto; o terrorismo leva vidas de pessoas a quem é reconhecida, de forma incontestável, personalidade jurídica, enquanto os fetos que nidificam no ventre materno não têm essa autonomia, são dependentes da mãe que os hospeda; e porque o aborto não é homicídio, como acontece com os resultados do terrorismo. A desorientação da igreja mostra a sua anacrónica veia. Colocar ao mesmo nível aborto e terrorismo pode apaziguar crentes e adversários da legalização do aborto. Com o custo, muito elevado, de não perceberem que escorregam para a desonestidade intelectual. Desnorte que chegou ao ponto de um alto representante da diocese do Porto ter comparado o aborto com a “roda dos meninos” que se praticava em tempos medievais.
Que seja urgente arregimentar as hostes perante os desafios que a igreja não consegue vencer – nomeadamente, viver a compasso do tempo que corre – é compreensível. Contudo, os devotos católicos são educados para a não contestação dos dogmas. Decerto não terá sido aos fiéis que a mensagem se dirigia. A prédica papal teria como destinatários os que começam a hesitar na fé e as ovelhas tresmalhadas, não crentes que a todo o momento podem ser resgatados para o rebanho. Só que o ardil é um lamentável equívoco. Funciona ao contrário do pretendido pela hierarquia eclesiástica. Se estão convencidos que é com estratagemas deste calibre que engrossam o rebanho, estão enganados. Terá o condão de afastar os que duvidam e de reforçar as convicções dos que estão nos antípodas da fé católica. Interrogo-me até se, à escala doméstica, não terá efeitos contrários aos pretendidos: falo por mim, que no dia do referendo não irei visitar a sala onde o meu voto pode ser depositado; mas, ao ler estas reacções desorientadas da igreja, sinto uma súbita pulsão para votar sim.
A retórica é uma arte sublime. Quando se perde em chavões ditirâmbicos, ou quando resvala para a imbecilidade, sobram pessoas de cabeça perdida (há que convir, não se trata de pessoas desprovidas de inteligência). Bento XVI, que por encabeçar a igreja católica tem especiais responsabilidades, devia ter a sensatez de medir as palavras. Para não passar a imagem de um terrorista intelectual que amedronta ignaras mulheres que já praticaram o aborto e que, por devoção, hão-de carregar até ao fim da vida o peso do supremo pecado sancionado pelo papa. Isto é terrorismo mental. O seu fautor é um terrorista que armadilha as consciências de quem fica preso às amarras da angústia, depois de escutar as sempre sábias palavras papais.
O que falta ao papa (e à igreja em geral)? Um consultor de marketing...
1 comentário:
Você sisma o contrário, mas não é inteligente. Não passa dum banal pseudo-intelectual. Com o seu nascimento perdeu-se uma excelente oportunidade de se realizar um aborto, mesmo que ilegal, daqueles feitos por uma africana autodidacta da prática numa arrecadação dum T1 sem garagem na Cova da Moura.
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