28.9.18

Montra paralela (short stories #38)


Idles, “Samaritans”, in https://www.youtube.com/watch?v=si2pZRifgIo
          As harpas embebem o ar com a sua melodia fina e as pessoas procuram a paz do coração vagaroso para retardar o tempo fugitivo. Não sabem do inventário dos males, que deixaram de permitir a entrada das dores na janela primária. Também não é o denso arrazoado dos pueris eruditos que apimenta a atenção: as pessoas descobriram, julga-se que a tempo, que o discurso gongórico é um filtro banal de quem se julga orador recitado, diante de uma plateia só falsamente atenta, e se permite o devaneio de perorar demoradamente: na linguagem consagrada pelo povo, “é preciso encher chouriços”, a arte superior dos eruditos que não parecem ter saído da infância. Monta-se montra paralela na avenida do entendimento. Os dados são jogados ao acaso por múltiplos jogadores e, avulsos, confessam um determinado fado. No instante seguinte já se perdeu o fio à meada, na desatenção com outras romarias que afluem ao pensamento (ou não se estivesse na avenida do pensamento). A meio do colóquio, um erudito pede a palavra. A audiência começou a dispersar, lenta e discretamente (para o erudito não ser acometido por uma fúria inveterada e disparar impropérios caldeados com vocábulos que ninguém conhece). Só fica um louco. O sorriso lunático é entendido como aprovação pelo erudito. Inebriado pela verve que julga distintiva (e distinta, ora essa!), o erudito deixa embaciar o olhar por imagens que saqueiam a fronteira da miragem: está convencido que a praceta está repleta de gente ávida por beber as suas impressionantes palavras. O erudito desengonçado montou a sua montra paralela. Não quer saber da higiene, nem da roupa já quase andrajosa, nem da barba descuidada: a estética é para os fracos de espírito. Quase no epílogo da função, o erudito foi ao bolso e tirou um revólver. Se a praceta estivesse cheia – e com policiamento a preceito – o pânico levantaria âncora. A sorte do erudito foi só ter o alucinado, imerso na sua passiva demência, na audiência. Nem deu conta do revólver. Continuou a sorrir como se estivesse a ver um programa de humor. O louco não seria tão louco como se esperava. Aquela récita, com a pose solene e intrinsecamente académica (outra frustração do erudito, pois então), a excitação das proclamações contundentes e a revelação dos imperativos categóricos, à prova de qualquer contestação, era a versão refinada de um programa de humor. Para bem do erudito, que escapou ao cárcere depois de ter empunhado o revólver, em pose ameaçadora, no clamor da razão que está, porque tem de estar, do seu lado. Não se sabe ao certo: talvez não fosse má ideia condená-lo a um temporário exílio na cadeia. Para arejar o ambiente.

27.9.18

Chapéu de palha (short stories #37)


The Smiths, “The Headmaster Ritual”, in https://www.youtube.com/watch?v=rDdbGQp7dwg
          As abas um pouco gastas do chapéu e o velho insistentemente seu proprietário: quem o conhece sabe que o homem traz sempre o chapéu de palha. Ninguém sabe como é o cabelo do velho – se é hirsuto, ou se o homem é calvo, em que medida e grau o cabelo é grisalho. No chapéu, alguns fiapos estão corroídos. Há partes do chapéu que já não têm fiadas de palha, pois o velho fez a sua meticulosa bricolage para aparar as fiadas que se soltavam do emaranhado e que punham em causa a harmonia (e, a seu ver, a estética) do chapéu. Na aba, como se fosse a lapela onde repousam as memórias fortificadas, depôs alguns pequenos ícones. Devem ter muito significado. A boneca de uma bailarina, representando aquelas meninas de porcelana que, de corpo tão franzino e sublimemente leve, estão fadadas para a dança. Talvez tenha sido um amor passado que o velho quis guardar num dos degraus do chapéu. Noutro lugar, diametralmente oposto, um minarete. Supõe-se que o velho se desenamorou da religião oficial (apesar da laicidade selada nas regras do país) e estoicamente abraçou o islamismo. A encimar o chapéu, no rebordo da aba que lhe é inferior, uma pequena cornucópia de flores, um arranjo minúsculo, cirurgicamente orquestrado, e que muda todas as semanas à medida que as flores se entregam à decadência e o velho sente um pulsar heurístico. Quase impercetível, outro lugar da aba acolhe um verso (com aspas, a indicar a citação de que foi esquecido o autor): “oxalá medre no penhor do olhar/o avesso da agonia.” O velho detesta rotinas. Nunca toma o pequeno-almoço à mesma hora e vai mudando de confeitaria para ver pessoas diferentes. Não fala com elas. Cultiva uma distância metódica e intimida quem dele dá conta e possa querer arrematar conversa de ocasião. Porque o velho também detesta conversas de circunstância, deitadas do aluvião de um inconsistente nada – da conversa apenas porque apetece, da não sumarenta conversa. Um dia, após o pequeno-almoço, o velho deixou uma jura vertida numa folha extraída a um bloco de notas: “Só deixarei o chapéu de palha à data da minha morte.” Quem o fosse velar poderia ver, pela primeira vez, o velho de corpo inteiro. No dia seguinte, nenhuma das confeitarias habitualmente visitadas soube do seu paradeiro. O chapéu de palha foi encontrado abandonado a um canto de uma paragem de autocarro.

26.9.18

Os censores da arte são os seus melhores promotores (e nem dão conta)


Marilyn Manson, “Tainted Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=XkKulSH2nNc
(Mote: a polémica sobre a exposição de Robert Mapplethorpe, em Serralves)
Fotografias: uma vagina escancarada, os dedos sem rosto provocadoramente a ajudar à função, descaindo para o clitóris; muitos pénis, flácidos e eretos, numa coreografia de órgãos ostracizados; um homem que urina sobre outro; um pénis com um homem envergando uma máscara sadomasoquista como pano de fundo; um punho totalmente encerrado nas entranhas de um homem; um grande plano com duas línguas entrelaçadas uma na outra. 
E uma polémica vendida no país dos brandos costumes e do puritanismo incensado num passado mal resolvido, com o beneplácito da santa madre igreja e de seus acólitos, envergando sotainas ou nelas disfarçando seus hábitos mundanos. E a tão zelosamente exercida censura, que as boas consciências não podem ser sobressaltadas por imagens obscenas, pornográficas, inquietantes, algumas delas talvez apelando a fantasias inconfessáveis que, por o serem, são escondidas em armários afinal mal fechados de onde gravita a censura. E os censores, ativamente educadores: imagens destas são um ultraje aos bons costumes, deles fazendo sua bitola, apesar de apenas eles (os censores) tomarem as imagens como atentando ao seu individual pudor.
Pecam por excesso, estes censores: se os achaques pessoais fossem resolvidos com a decisão de não frequentarem a exposição e se continuassem em silêncio, não perpassava, da sua atividade censória, o duplo opróbrio: por um lado, afogueados por imagens tão “perturbantes”, nem dão conta da excessiva exigência de extravasarem para os demais os seus individuais estalões morais, que são seus, apenas seus, e não podem ser impostos aos demais; por outro lado, tão zeladores se constituem dos bons costumes que, no afã de esconderem a imoralidade do olhar alheio, acabam por prestar um inestimável favor à divulgação das obras de arte que, porventura, nem longas campanhas publicitárias, pagas a peso de outro, teriam o condão de alcançar.
É esse deleite que os censores intemporais não me sonegam. Por mais que protestem contra a “indignidade” da arte de que não gostam, enovelam-se numa polémica tamanha que acabam por ser os patrocinadores maiores da arte que desprezam. É essa a ironia. O viveiro das muito conservadoras almas que querem esconder dos olhares sãos as obras tingidas pelo fervor do satanás nem percebem que é a sua ativa militância que as entroniza como obras de arte. Foram educados por canhestros pastores que ignoram a faceta provocadora da arte. Transigem no jogo da provocação, caindo no logro e invalidando a sua causa com as tonitruantes vozes de protesto que se terçam contra a arte. Não são só eles os (no seu caso, indiretos) curadores destas obras de arte, que elas contêm uma genuína arte em si; com o seu agravo, limitam-se os arcanos moralistas a amplificar a arte que tanto queriam esconder (se o mundo fosse um ideal lugar onde só eles mandassem). 

25.9.18

À Argentina que há em mim (short stories #36)


Massive Attack, “Be Thankful for What You Got”, in https://www.youtube.com/watch?v=f9kAo0KgEu8
          Dado como perdido, um paradeiro sem vestígio: prouvera um lugar ermo, inabitável, onde fosse peregrinação imperativa a demanda da alma sem âncora. Pelo menos, era assim que tinha a alma, como se perdida estivesse no meio dos escombros. Uma imagem emergia: um sobrevivente, andrajoso e campo de cicatrizes ainda frescas, a escavar entre os escombros, antolhando um refúgio entre o entulho amontoado. Talvez não fosse a metáfora certa. Se fosse ao fundo da questão, não via onde estavam os sismos que ameaçavam as estacas da vida. Não encontrava os sobressaltos que fossem pergaminho do paradeiro sem vestígio. Ouvia uma voz sem rosto murmurar constantemente num canto da consciência: “é da natureza humana: as pessoas não dão valor aos bens que têm e não fazem nada por os conservar.” Não atribuía importância a essas palavras – mesmo que admitisse que elas eram sussurradas por um alter-ego da consciência. E, no entanto, havia um mar imenso entre este lugar e o lugar que pedia exílio, ao menos um temporário exílio, na companhia apenas da mulher amada. Era como se a fuga equivalesse a um refúgio necessário. Uma demanda segura para descobrir um paradeiro que julgava esbatido. Um pouco como se houvesse, num lugar diametral, a fonte nova para matar uma sede, a sede com o tributo da reinvenção – ou apenas um sintoma mal diagnosticado de fadiga, de repúdio do lugar que era tributário da identidade; como se fosse preciso rever as coordenadas da identidade e saber onde se encontram as costuras da pertença. Não era mais do que isto. Não era uma fuga de pessoas. Ou era: não das pessoas queridas, mas das pessoas que estão no púlpito do reconhecimento e se distinguem pelos atos e palavras que em mim são abjetos. Na recusa deste modo de vida mesquinho, atávico, patologicamente conservador, religiosamente castrador, onde tendem a sobrepor umas consciências (autoproclamadas tutoras) a outras (remetidas à condição de acríticas seguidoras). É de uma Argentina profunda, distante, antípoda, nas lonjuras da quase inabitável Patagónia, que preciso de refúgio. Sem sair do lugar. Pois essa Argentina encontro-a nas profundezas da alma, libertada dos constrangimentos da informação contaminada, purificada por um amor singular. 

24.9.18

Tie-break


Passions, “I’m in Love With a German Film Star”, in https://www.youtube.com/watch?v=5-3JNRC2gvo
A ver quem adormece mais tarde: o tira-teimas em levitação, sem razão aparente, a não ser o choque de titãs das teimosias impregnadas. Não há quem queira dar o braço a torcer. Oxalá sejam descobertas distrações capazes de prolongar a insónia. No embate das teimosias, as forças jogam-se em refluxo de si mesmas. Mas ninguém o quer admitir, ninguém permite o menor sinal exterior de capitulação. 
O jogo adianta-se. Demora-se no que já parece uma eternidade. Não sai do empate, que se afivela na exata medida da teimosia que alimenta os competidores. Aquele que rompe o silêncio é sinal de fraqueza: é porque precisa de conversar para arrastar o cansaço para além do fio do tempo. Por isso, o silêncio tem um prazo de validade de uma largueza excruciante. Por cada sílaba de silêncio parece que os segundos se demoram, desmentindo a aritmética do tempo. Mas ninguém quer saldar o pleito com o rosto rebaixado dos derrotados. A noite já acabou e não há maneira de se adivinhar o epílogo. 
Saem à rua: o ar fresco da manhã, ainda pouco povoada, repara os sinais de fraqueza. Param no primeiro café para o pequeno-almoço. Um café forte precede o pequeno-almoço, que termina com outro café forte. Pelo meio da manhã, ainda sem sinais de um dos competidores molejar, o silêncio já não ocupa mais tempo do que as palavras. Não concedem, mas é o primeiro sinal de que o sono derrotará a teimosia impenitente. Ainda almoçam. Terminam o repasto com um café duplo, para multiplicar a vitamina que intui o arrastamento do cansaço. 
Lá fora, os cães, em matilha, ladram furiosamente. Demoram-se no protesto. Terão saído à rua em protesto, pois estes são tempos em que as corporações fazem valer os direitos que reclamam e o protesto público serve de caução. Nenhum dos competidores sabe por que protesta a matilha. Talvez estejam descontentes com a qualidade da ração. Ou em comício a favor dos movimentos que defendem os direitos dos animais – ou, quem sabe, num protesto ruidoso depois de saberem que um touro foi estupidamente morto numa boçal festa popular. Um dos competidores estava para jurar que ouviu um dos cães dizer que se devem fechar as fronteiras aos refugiados. O outro contrapôs que um outro membro da matilha deu uma entrevista na televisão e, em discurso escorreito, perorou sobre a estética e a densa filosofia da outrora rapariguinha de shopping que foi contratada, a peso de ouro, por uma estação de televisão. 
O tie-break findou num empate técnico.

21.9.18

Todos temos uma teia de preconceitos que nos enreda (short stories #35)


Sugarcubes, “Birthday”, in https://www.youtube.com/watch?v=edmDN11BxCY
          Quando alguém denuncia um preconceito, pode dizer que não tem os seus (talvez bem escondidos – ou apenas, os seus obnubilados) preconceitos? É repulsiva, a bazófia moral dos que patrulham preconceitos dos outros e os apontam a dedo como matéria altamente danosa, como se alguém lhes tivesse pedido para serem juízes da integridade alheia – e como se, a eles próprios, não fosse dada a inventariação dos seus preconceitos. Não se acredite que haja vivalma imune ao estigma dos preconceitos. O sindicalista insurge-se contra os fartos proventos do banqueiro; tem aversão aos obscenos lucros que revertem para os afortunados. O sindicalista denuncia o preconceito do banqueiro: o libelo acusatório é do banqueiro como alma grotescamente empedernida, insensível às carências dos necessitados. O sindicalista talvez não conheça o banqueiro a ponto de poder afirmar o preconceito que dele ensaia protesto. O pressuposto é linear: o banqueiro é abastado e não olha para baixo, onde vive à míngua um numeroso exército de necessitados. Partir deste pressuposto é um preconceito: o sindicalista objeta os proventos do banqueiro e associa-os à sua recusa da prodigalidade na assistência social. O sindicalista limita-se a adivinhar: medra no seu próprio preconceito. O banqueiro acusa o sindicalista de ser um poltrão. (Por concessão legal, o sindicalista está dispensado do trabalho no banco para se dedicar às tarefas do sindicalismo.) O banqueiro afirma o seu preconceito: como o sindicalista não trabalha no banco, não trabalha, simplesmente. Para o banqueiro, o sindicalista é um parasita. Não sabe se o sindicalista não gosta dos lavores profissionais; adivinhando, esconde-se na cortina baça do sindicalismo que lhe causa transtornos para tirar conclusões precipitadas – conclusões que têm o preconceito como distintivo. No mar tumultuoso dos preconceitos, a posição cómoda é patrulhá-los como casa da partida para a denúncia agressiva. Ao sermos acusadores do preconceito do outro, raramente admitimos que partimos de um preconceito de sinal oposto. De onde se pode concluir que não há mal em termos preconceitos que nos enredam. Todos temos. O segredo está em não acusar os preconceitos que não são nossos. Para podermos gerir os nossos com algum conforto de consciência.

20.9.18

Ato falhado (short stories #34)


Tricky, “The Only Way” (live at France Inter), in https://www.youtube.com/watch?v=S2iNRBWzeBY
          Grandiloquente projeto irrompe numa alvorada disposta no mapa das possíveis proezas. Em silêncio, apenas no recobro do pensamento, desenham-se os contornos. Primeiro, as linhas-mestras. Depois, as fronteiras em que se contém o projeto. Em sua sequência, os detalhes vão saindo do novelo. Ramificações que se desdobram em sub-ramificações. Um todo já complexo e ainda não foi alinhavada uma frase no papel. As ideias ficam a fermentar, o dia inteiro. Parece que esse dia foi de hibernação: não fosse pela convulsão do pensamento, dir-se-ia que foi um dia que saltou por cima do calendário. Depois do sono, as ideias voltaram a sussurrar ideias outras ao pensamento. Mais ramificações numa árvore já densa. Até a ver, o pensamento conseguiu guardar na memória a planta onde a ideia se esboça. Mas depois há outras empreitadas que se metem pelo caminho. Empreitadas umas urgentes, ultrapassando a ideia que cristaliza o projeto grandiloquente. Outras, tornadas urgentes como pretexto para procrastinar o projeto. Até parece que o projeto, de tão grandiloquente, amedronta. Tolhe o pensamento, sobressaltado com tamanha ousadia, incerto da capacidade para pegar de caras na ideia e levá-la pela trela por onde ela quiser ir. Talvez seja isso: o medo de que a ideia ganhe corpo próprio e se emancipe da ideia como foi desenhada nos seus alvores. Esse medo não devia adejar. As ideias podem ser obrigadas a percorrer um curso diferente do pensado no início. As hipóteses podem formular interrogações que se desdobram em interrogações posteriores que levam a lugar nenhum; ou que são a caução de outras interrogações que obrigam a desviar o curso da ideia. É quando a ideia se enovela na complexidade. Por mais que o pensamento se afirme despojado de peias, pode travar o passo ao ser desafiado por uma complexidade que transborda as possibilidades. Ou pode ser apenas o espaço sideral entre as ideias formuladas em pensamento e o entorpecimento de as passar ao papel, o pensamento trespassado pela sua própria gula. À frente da página em branco, sitiado por uma incapacidade de fazer passar as ideias a escrito, uma voz sem rosto murmura incessantemente o ato falhado. Não faz mal. Ao menos, fica registada a tentativa para memória futura. 

19.9.18

A não demonstração do iniludível: deuses com pés de barro (short stories #33)


Kid Creole & the Coconuts, “I’m a Wonderful Thing, Baby”, in https://www.youtube.com/watch?v=-RGgSdQubnM
          Quão bem fazem as termas – e o chá de camomila; e um banho de modéstia? Muito. Sobretudo se as parangonas desfizerem a unção quimérica que se abate sobre os (soi-disant) predestinados. É um banho de sinal contrário: um banho de humildade, as águas temperadas com um módico de realidade, só para perceberem que o pedestal não tem alicerces e o cais em que se dizem ancorados é uma ilha fragilmente hasteada no meio de um mar cercado por nada. À ideia dos deuses com pés de barro opõem-se as impossibilidades. Primeiro, da ideia de deus. (A negação metafísica e a discussão que se segue é deixada para outras núpcias.) Segundo, o barro é de uma fragilidade confrangedora. Na aparência, matéria pétrea. Ao menor abalo, qualquer que seja a tergiversação, o barro funde-se com a sujidade do chão onde se despedaça. Os vestígios, mesmo que sejam colados, não permitem a fruição do original. É apenas um sucedâneo, com a inerente adulteração. Afinal, o iniludível é um embuste. O ponto de mira sem presa à vista, um tiro de pólvora seca. As proclamações contundentes não passam de palavras vazias. As juras são o despeito do passado. Em vez do verniz, e uma vez ele decapado, a autêntica essência deixa à mostra deuses com viabilidade humana – logo, se bem se percebe a ideia dos que patrocinam a deificação, uma contradição de termos (a divina condição não estará ao alcance dos simples mortais). Talvez por isso esteja adjacente a ideia dos pés de barro. Serem só os pés é revelador; falta o resto para se imbuírem de uma armadura inexpugnável. Mas mesmo que sejam de barro os pés, não se percebe que divina condição lhes assiste. Pois se de barro são feitos seus pés, e se o barro é matéria inerte que condena os passos à inércia, estes serão deuses que não saem do mesmo lugar. Triste destino, o destes putativos deuses, condenados à exiguidade de um espaço. Prouvera um pouco de termas (ou de chá, ou um banho de modéstia), para ao menos alargarem horizontes e fazerem jus à (soi-disante) condição de deuses.

18.9.18

A conspiração dos estrénuos (short stories #32)


Lisa Gerrard, “Sanvean (I Am Your Shadow)”, in https://www.youtube.com/watch?v=1xpkRj99FH0
          Uma bênção com águas especialmente bentas e, todavia, pagãs: meio mundo (ou talvez mais) espera na fila pelas prebendas que a fortuna dos conhecimentos certos lhes possam calhar em sorte. Diz-se que uma multidão prospera na exata medida desta equação. Protestam os revoltados: de fora fica um escol que esbarra numa insuficiência insanável: não lhes é conferido o conhecimento certo (direto ou por interposta pessoa) que abre as portas certas e perverte a escada do valor. Os estrénuos condenados à insignificância reúnem-se em sindicato. Exigem outro método para a distribuição das sinecuras. Seria necessário empossar um imparcial juiz das escolhas, com meios para apurar se as sinecuras beneficiam os mais capazes ou os que têm a fortuna de gravitar nos conhecimentos que abrem as portas certas. Os segundos seriam travados de tomar conta das sinecuras, a não ser que, além do conhecimento facilitador (palavra em moda) ficasse provado que se distinguiam da concorrência depois de compulsados os critérios relevantes. Em caso de não ser possível (ou de não haver vontade para dissolver o poderoso sindicato dos conhecimentos que abrem as portas certas), os estrénuos ameaçam passar à ação direta. Primeiro, denunciando nos jornais os aberrantes casos de seguidores de gente importante que, apenas por possuírem essa condição, são escolhidos para uma função. (Porventura teriam de indagar se os jornais não se encontram a soldo desses influentes meios.) Segundo, comparecendo nos lugares a concurso no dia da tomada de posse, deitando mão ao livro em que ficam seladas as tomadas de posse, assim impedindo que as sinecuras fossem monopólio da gente errada com conhecimentos certos. Quando fossem expulsos na decorrência da intervenção policial, os estrénuos deixariam panfletos significativos da ação, deixando a nu os não-critérios e a embusteira escolha de afilhados, de afilhados de afilhados e de gente com militância cirurgicamente escolhida em partidos e em sociedades secretas. Até tudo se questionar – até os pergaminhos dos estrénuos, que em alguns (ou muitos, depende da perspetiva) casos estar-se-iam a passar por condecorados sem condecoração e sem objetivo direito à comenda. Às vezes, é quase impossível distinguir o despeito da revolta fundamentada.

17.9.18

Do circo como arte quotidiana e estranhamente não reconhecida (short stories #31)


Trentemøller, “Deceive”, in https://www.youtube.com/watch?v=rcBVG-n6Hts
(Subsídios para uma nova teoria da luta de classes, versão século XXI)
Petição de princípio: somos todos palhaços e raramente damos conta. Também se podia dizer que somos a carne para canhão no patamar dos poderosos e que não temos armas para contrapor a infâmia porque não damos conta do papel em que somos colocados. Meros peões na arenga dos fortes, mexem-nos a seu bel-prazer e com a nossa aquiescência – melhor dizendo: contando com a nossa passividade. Ou ainda, e com recurso ao vernáculo, ficamos na posição passiva de quem é sujeito a fornicação por outrem, sem haver um módico de intimidade que sugira o ato, e com a agravante de, por não nos ser dado a saber que estamos rendidos àquele papel, não tirarmos prazer do ato lúbrico. De todas as hipóteses, a de palhaço parece a mais fidedigna. Descontando a narrativa do fado, e um certo sentir nacional que puxa ao melancólico, anuímos abulicamente e com um doce sorriso pespegado no rosto, vítimas das experiências que os poderosos ensaiam em nome do bem-estar social. No apuramento dos resultados, o progresso (de que se diz ser a métrica que avalia o andamento dos tempos) é uma cilada. Ao contrário do propagandeado, o progresso só é tangível para um punhado de afortunados. Os mais novos parecem condenados a não ter as mesmas oportunidades das gerações antecedentes, contrariando a lógica do progresso (que se revê numa farsa). E rimos e fazemos de conta que estamos felizes e compensamos com o papel de consumidores, no congresso onde se liquidam as contas do grupo com o bem-estar. Para coroar o cenário risível, damos caução aos próceres que nos afocinham numa espiral de desesperança que, todavia, não é detetada. Daí sermos palhaços. Levamos às costas os poderosos, autênticos parasitas com a sua covardia sem disfarce. O que só é possível porque continuamos em letargia, presos ao jugo da ignorância – ou, quando não existe ignorância, sitiados pela catilinária da indiferença. Não damos conta, mas andamos nas ruas com uma farta bola vermelha no lugar do nariz, uns andrajos fartamente coloridos e uma cabeleira que simula semi-calvície. A semi-calvície que metaforicamente ostenta o zelo que se dissolveu nos vasos que ficaram ausentes de ornamentos capilares. É histórico: o mundo sempre precisou de um elemento circense.

14.9.18

Apeadeiro (short stories #30)


The The, “Good Morning Beautiful”, in https://www.youtube.com/watch?v=fwv9IAKajc4
         Há uma inexplicável descoincidência entre os apeadeiros e a atenção que deviam merecer. Os comboios apressados passam pelos apeadeiros quase sem darem conta. Nos comboios apressados, de tanta a velocidade, não é possível saber a que terra corresponde o apeadeiro. Dir-se-ia: são comboios importantes; e os apeadeiros, pequenos pontos irrelevantes na cartografia dos comboios, pouco fazem para sequer chegarem ao estatuto de figurantes. É a metáfora acabada dos tempos vertiginosos. De tanta ser a pressa para apressarmos o tempo, queremos que se encurte a distância entre a casa da partida e o destino. Tudo pelo meio perde validade. No afã de tão depressa arrematar o destino, toda a distância entre a casa da partida e o destino é um contratempo. Não chega a haver atenção para os segredos escondidos nos lugares que medeiam a casa da partida e o destino. É o fatalismo que nos cerca, na sociedade cheia de pressa para esgotar o seu tempo – nesta sociedade tão etereamente circense. (No âmago do mais controverso paradoxo: é como se estivéssemos fartos do tempo e nos apressássemos a exauri-lo, como medida certa para a finitude que nos espera.) O olhar distrai-se. Sob o seu perímetro escapam as paisagens bucólicas, os lugares ungidos de beleza, as lições de cultura embebidas nos exíguos lugares que ficam sem recordação, um canto do tempo que, de tão sublime, se emoldura na sua possível intemporalidade. Os apeadeiros materializam a lente desfocada de que é tributária a modernidade para onde somos atirados. Os apeadeiros são espasmos que se metem no meio da apressada cavalgada do comboio importante. No fogaréu das coisas entendidas como importantes, o olhar sitia-se num equívoco. Numa camada inferior à sua alçada, perdem-se na desmemória todos os apeadeiros que mereciam demorada paragem. Até que haja tempo para entender que o tempo não merece ser precipitado. Até que à lucidez venham os rudimentos das pequenas e intensas coisas que se sobrepõem às miragens infecundas, aquelas que dispensam a paisagem estabelecida entre a casa da partida e o destino marcado a tinta da China. 

13.9.18

Dou-te um Tejo de presente (short stories #29)


Indignu [lat], “Foi Outubro”, in https://www.youtube.com/watch?v=rPWMco2rutc
          Não olhes o vazio do tempo. Que os jardins alindados, em sua aformoseada constelação de cores, inundem o olhar com os pergaminhos da candura. Em caso de dúvida, regressa à mnemónica, ao estiolado vulto que já não açambarca medos, ao ramalhete de rosas silvestres que empresta aroma às manhãs. No sopé das maravilhas, onde teu seio acolhe a mão minha ávida, ascendemos ao lugar onde pertencemos como soberanos. Metemos pelas ruas estreitas sem saber onde estamos, sem saber sequer para onde vamos. Deixamos os sentidos ganhar corpo e sobre os corpos prevalecerem. Há um ode longínqua que reverbera suas estrofes no peito que as chama. Não precisamos de hinos. Aspiramos ao promontório escondido de onde desenhamos a janela que se verte sobre o mar. Podia dizer: “dou-te um Tejo de presente.” E digo. Mesmo sabendo que um Tejo de presente é pecúlio magro para a soma de mundos que me trazes de repasto. Mesmo sabendo que do presente somos tutores sem medo. E vamos à orla do Tejo, onde a maré baixa deixa à mostra os vestígios não levados pela maré antecessora. Percorremos o chão túrgido que se abeira do rio. Não nos assusta o chão enlameado. Se deitássemos uma régua no fio que encima o leito do Tejo, haveríamos de descobrir as equações não simuladas que desembaraçam os equívocos. Só por curiosidade. Que um olhar de rompante, fulminante como a trovoada é admirada enquanto fenómeno da natureza, descobre em nós o apetite pelo mundo. Trazemos as palavras do ninho de onde as descobrimos. Sabemos o que fazer com elas. Como ninguém. Sabemos como as compor num sortilégio sempre inacabado. Às medidas protocolares, dizemos que não. Pois o Tejo, em seu amplo estuário, tão amplo que reduz a quase nada o casario do outro lado da margem, é uma força arrebatadora, o caudal onde se sufragam as luzes diuturnas. O Tejo que te dou de presente, é o chão sereno onde as convulsões se saldam. O Tejo que te dou de presente, o casario insaciável onde se deita o tempo na sua medida certa.

12.9.18

Contra os tempos dantescos que se auguram, uma teoria das expetativas aumentadas

Goldfrapp, “Utopia” (live at Somerset House), in https://www.youtube.com/watch?v=qVsETSgiMnU

(Mote: “The Monarchy of Fear: A Philosopher Looks at Out Political Crisis”, 
Martha C. Nussbaum, Oxford University Press, 2018)
As sombras acastelam-se, deixando um aroma nauseabundo tomar conta do horizonte. Parece que não aprendemos com os erros que a História nos ensina. Há quem emudeça a memória e caia na vertigem de fazer o passado enodoado ser tutor dos tempos vindouros. Os sinais multiplicam-se. O populismo estéril; a nova direita que retoma a pulsão do nacionalismo, da autarcia, da voragem do ensimesmamento, em que os outros são o viveiro das desconfianças e do repúdio – em que os outros chegam a não ser tratados como pessoas; a entorse da democracia (rebatizada “democracia iliberal”, numa perfeita contradição de termos), com constantes atropelos à tolerância e às liberdades que se julgavam património imaterial da democracia; com a velocidade de uma bola de neve que desce a montanha, recrudescem os radicalismos que conferem viabilidade (e legitimidade eleitoral) a movimentos que negam o concurso de ideias que lhes permitiu fazer prova de vida; e tudo – repita-se – em pura contrafação da História, parecendo que a memória dos Homens é curta, ou que se reinterpretam acontecimentos na usura de quem lhes nega visibilidade nos arquivos da memória.
Do lado oposto, radicalismos de sinal contrário. Evocam a desmedida dos tempos, os crimes julgados, a memória da História. Insistem que não deve ser dada voz a quem não respeita os outros, a quem passeia no limiar da intolerância e não se esconde do impudor dos métodos violentos para calar quem deles discorda. Do lado oposto, crescem as vozes que querem calar quem os quer calar. Protestam: não se pode iludir a História e dar palco a quem dá caução a tantas atrocidades; devemos desconfiar de quem se esconde das responsabilidades mundiais e prossegue na senda da provocação gratuita, atuando como pária quando devia ser ancoradouro de estabilidade. Do lado oposto, emerge um discurso que é tão intolerante como a intolerância que quer combater. 
Não se entende que uma intolerância seja melhor do que uma intolerância com diferentes pergaminhos. Nem é de aceitar que no salutar concurso de ideias, que deve ser o esteio das discussões na praça pública, alguém ouse silenciar o oponente porque o oponente é geneticamente avesso à tolerância e ao respeito pelo outro. Pode-se argumentar, outra vez, com as lições da História: se o oponente tiver oportunidade, serve-se do seu autoritarismo sanguíneo e silencia-nos. A bem ou a mal, que o oponente não olha a meios para alcançar os objetivos. Há uma forma diferente de encarar o desafio que vem do futuro. Em vez da crispação que alimenta crispação e que pode desaguar em violência ou num resultado fatalmente pior, devemos ter a disposição para a discussão de argumentos. É o que Martha C. Nussbaum chama amor. Eu acrescentaria: amor contingente – contingente, por ser uma adaptação aos desafios colocados e por ser um amor diferente daquele a que estamos habituados (amor filial, amor familiar, amor com quem partilhamos a vida). Não podemos engrossar o exército dos que se propõem colorir o horizonte com sombras, numa espiral interminável que não é bom presságio. 
Devemos alimentar uma teoria de expetativas aumentadas. Só se pode confinar os intolerantes a um reduto insignificante se com eles forem discutidos os assuntos que interessam. Se nos recusarmos a sentar à mesma mesa, virando o rosto à discussão, somos culpados de eles se fazerem passar por vítimas. Há muita gente que se deixa seduzir por quem se oferece ao papel de vítima. Isolá-los, deixá-los sozinhos num monólogo, deixá-los arcar o papel de vítimas, é meio caminho andado para arregimentarem mais lealdades. É o método errado. Quando dermos conta, somos minoritários e ficamos expostos às atrocidades que adivinhamos que podem cometer. 
É este o sentido do amor preconizado por Nussbaum. Amor, no sentido de amarmos os valores que são o húmus da civilização e de por eles estarmos dispostos a discutir com quem deles se afasta. Se deixarmos os intolerantes a falarem sozinhos, não os confrontamos com a discussão. Se elevarmos a fasquia e formos concorrentes com eles no domínio da intolerância (porque há quem continue a supor que a sua intolerância é derrotada com a nossa intolerância em relação a eles), estamos a dar-lhes os trunfos que eles anseiam. Os descrentes podem duvidar do método, podem até acusar o toque de um certo lirismo sem chão para prosperar – assim como assim, dirão, este amor dirigido aos oponentes pode ser o pasto para a nossa consumição. Pesados os prós e os contras, o amor contingente parece melhor método, por mais lírico e extravagante que pareça. 

11.9.18

Pós-moderno (short stories #28)


Viagra Boys, “Sports”, in https://www.youtube.com/watch?v=QjL7D33xpS4
          Os garfos em cima de mesa, protocolarmente deitados em sinal de fim de refeição, deixaram de ser modernos. Tiveram uma modernidade efémera: duraram enquanto foram serventuários da refeição (enquanto a cultura não decide mimetizar costumes outros que ensinam a comer à mão – talvez uma proposta de modernidade que ensaie seu lugar). O livro acabado de ler também perdeu serventia. Por mais que convoque os leitores para uma visão ousadamentefuturista sobre os temas contemporâneos (ao jeito dos iluminados que estão sempre três – ou mais – passos à frente dos demais, dando-lhes uma vantagem de presciência que termina vertida em forma de livro), e por mais que tenha feito, enquanto leitor, um esforço para ao menos compreender o argumentado, o livro perde a voraz modernidade porque as ideias foram assimiladas e as sinapses decretaram a sua falência como ideias aceitáveis. A própria maré alta, prevista para as dezasseis horas e cinquenta e sete minutos, será arcana quando tiver o seu epílogo e for substituída pela maré a vazar. Os gurus de qualquer coisa, visionários do domínio de sua peritagem, são nomeados por si mesmos zeladores da vanguarda. Ufanam-se de estarem à frente dos comuns mortais (como se fosse possível, por esse ato de diferença, garantir um estatuto de perenidade). Ficam no limiar da apoplexia quando são desafiados por oponentes ou – o que piora o diagnóstico – dissidentes. Entram em negação quando lhes provam a falsa fartura do proclamado. Não aceitam que os pergaminhos da modernidade, quais faróis que dissolvem as trevas do atavismo e garantem a claridade benigna aos demais, sejam hipotecados. Insiste, em protesto contra os arautos de qualquer modernidade: a modernidade esgota-se no momento da sua tradição. É o tempo, não açambarcável como o vento que se desembaraça dos dedos, que atraiçoa os titulares da modernidade. Menos sentido se intui aos rótulos que atiram a modernidade para avançados estados de maturidade. Se a modernidade se consome na efemeridade inata, não é o ardil de adicionar o “pós” à “modernidade” que a salva do rogatório obsoleto.

10.9.18

Obsoleto (short stories #27)


The Sound, “Winning” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=TUmF8xuSyoA
Da frente para trás, para poder convocar o impecável oráculo que adivinha o passado quando ele é visto desde o futuro; e para poder garantir que alguém é obsoleto, imprestável para os desafios consultados desde a magnífica varanda da modernidade. Obsoleto: como se sê-lo fosse uma sanha; e como se houvesse um manto de infalibilidade dos juízes que decretam a obsolescência de alguém. No conciliábulo das coisas datadas, até para os que se esquecem do passado (porque não é nessa dimensão que a vida é levada) a acusação impenitente que se abate sobre o obsoleto é uma ferida em carne viva. Quase apetece navegar pelas mesmas águas integrantes da obsolescência recusada (mesmo que nada haja nelas que cative um módico de identificação). A soberba dos gurus da modernidade (dos que assim se autoproclamam) é o convite perfeito para transitar nos seus antípodas. Quando surgem, ufanos e assertivos nas sentenças à prova de contestação, motivam um repúdio liminar. Não fosse dado saber das águas constitutivas em que navego, diria que o chamamento das coisas datadas e lançadas para a indigência é heurístico; não fosse saber que não alinho nessa comunhão, e não fosse saber o lugar que habito, a infâmia dos gurus da modernidade quase me atiraria para uma orfandade de referências (não fosse o mundo muito mais complexo do que a leitura binária destes gurus). Aos que ditam as modas e selam com sua imensa presciência o fardo pesado da obsolescência, fica a calúnia de não se conseguirem extrair do pequeno mundo em que lobrigam. É uma forma peculiar de autismo. Com a agravante de que se acham possuídos de dotes especiais, talvez com uma qualquer cobertura divina, para ditarem regras que os demais devem acatar. De tanto ditarem (modas e regras e os estamentos do que é datado), são autênticos ditadores. E os ditadores, o máximo que merecem é o mutismo da nossa atenção.

7.9.18

A celebração da loucura (short stories #26)


Moderat, “The Fool” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=SuyMyAkggiI
          Usava um girassol a tiracolo. Ao pequeno-almoço, enquanto lia a biografia (não autorizada) de Sidónio Pais, bebia leite de cabra misturado com sumo de romã e açúcar mascavado. Comia pelo menos quatro chocolates por dia. Sorria aos grosseiros que passeavam a boçalidade como arma de defesa. Ignorava as criancinhas (não guardava grandes memórias da infância – e gostava de saber porquê). Tanto ouvia heavy metal, como coros búlgaros, ou Bach, ou a última revelação da música etíope. Já não ia ao médico há um lustro. Não acreditava em confidências. Às vezes acreditava em religiões (nos dias em que comia peixe ao almoço). Gostava de ter um gato, mas as alergias não consentiam. Em dias livres, ora se refugiava no quarto, de janelas fechadas ao mundo, sem livros por perto; ora desempoeirava os destemperos em caminhadas longas e sem rumo definido, obedecendo a uma aritmética ao acaso (virar na segunda à esquerda, cortar na quinta à direita, descansar no primeiro jardim público). Aprendeu polaco sem ter necessidade. Só havia uma coisa que a irritava: o manual das convenções e o imperativo de as pessoas, para normais serem consideradas, seguirem o preceituado no manual. Não quis ter filhos, só para contrariar os lamentos dos governantes sobre a crise demográfica. (Nunca teve a certeza do que era o amor e nunca foi tomada de assalto pela convocatória do amor filial – e isso jogava a favor da recusa em ser mãe.) Gostava de se sentar à mesa de um café e meter conversa com o desconhecido da mesa do lado, para dissolver as sementes da timidez. Gostava de escutar histórias de viagens – pois só tivera a oportunidade de viajar em palcos imaginados. Outorgava ao devir o altar do seu passado, pacientemente à espera que ambos se entendessem para se desembaraçar do resto. Ao fim da tarde, quando lhe apetecia, simulava-se turista e pedia informações aos nativos. Dormia sem sobressaltos e não se lembrava dos sonhos (e dos pesadelos). Sabia, ao acordar, que o seu rosto não era uma máscara. O que caucionava a seguinte noite de bom sono.

6.9.18

O alforge dos excessos (short stories #25)


         Era aquela curva, que se fazia sempre mais depressa. Contra a apoplexia que pairava durante uns instantes – os exatos instantes em que a curva era dobrada –, sem se saber se os limites estavam a ser desafiados, constituindo-se deslimites. Havia sempre uma velocidade estonteante por experimentar, atirando os limites para as baias do excesso. Dizia que a intrepidez não era caução de demência nem de irresponsabilidade. Era zelador das chaves das circunstâncias controladas, como quem precisava de provar a si próprio que não era disparate o excesso cometido. (E se não era disparate, não era excessivo – concluía, antes de travar conhecimento com a filosofia da complexidade.) A certa altura, encontrei prova de outros mais destemidos (e com o beneplácito das autoridades, ao contrário das proezas que cometia, fora dos limites da legalidade). Na Finlândia, os limites têm outro significado. E assim contemporizava a análise a meu favor. Os limites não toleram limites objetivos. Aquela curva, que dominava contra as probabilidades da imoderação, era o palácio da minha coragem. Nem sabia se a curva fora testemunha de proezas de semelhante igualha, ou se até houve quem a dobrasse mais depressa. Não importava. Aquela curva era o tempero da minha imortalidade. O alforge dos excessos. Deificava-me no sopé dos excessos. (Como se fosse preciso acreditar em deus.) E continuava a desafiar a geografia da curva. Nunca soube se era fautor de um excesso. Nunca fui derrotado pela curva, por mais veloz que a desenhasse. Na frágil fronteira entre a derrocada e a audácia, dei conta de um imenso deserto por dentro da euforia dantes alinhavada. Pois se nunca soube ao certo onde estava o limite daquela curva, não podia ser acusado de excesso. E por mais que o pundonor fosse selado como epítome, lá no fundo sabia que era estranhamente estroina para diluir o medo no arame da euforia. De uma euforia sem sabor. Pois era minha dádiva não ter sido desfeiteado pela curva que teimavas em adestrar na corda bamba.

5.9.18

Bolsa de resistência (short stories #24)


Mogwai, “Donuts”, in https://www.youtube.com/watch?v=_5CHTscFyFo
       Que sorte é esta que se perde no vulto inebriado com o nevoeiro da manhã? Não se hipotequem os campos sombrios só por não estarem sob a alçada do sol. Que desatem a esvoaçar os sacerdotes da destemperança, ávidos para apanhar o próximo comboio da ilusão no apeadeiro mais à mão. São eles, os bastiões da resistência – os que recusam a conformidade dos espelhos propositadamente baços, em estilos medievais que escondem a grandeza que se alberga em cada alma. Resistem: fazem o que intuem ser melhor, quando lá fora sussurra o vento fétido da aceitação acrítica. Na bolsa de resistência, o azar dilui-se na sua astúcia. Aprende-se que só somos reféns do azar quando, por dele termos medo e de tanto dele fugirmos, acabamos por ser seu chamariz. Essa é a maior sorte que se pode açambarcar no promontório de onde se alcançam os horizontes escondidos atrás do horizonte fácil. Não coalescem as presas de outrora se não na vontade de não repetirem a desdita. A apatia sitia a vontade e sufraga-a na catedral vetusta onde cantam as vontades exteriores. Onde essas vontades se sobrepõem, por um critério qualquer. O imperativo é resistir. Contra a sensação gasta de que não somos tutores da nossa própria vontade. Contra os suseranos que protestam, a seu favor, o abuso do poder de quem chama a si o estatuto. Contra os enxovalhos de quem usurpa a vontade exterior a si. Por dentro da bolsa de resistência, nem interessa denunciar esses atropelos. A vacina recebida torna essas torpezas irrelevantes, impróprias para a identidade dos que militam nela. Tudo se passa como se a bolsa de resistência estivesse alojada num castelo inacessível aos torpes. Com paredes de aço, ameias torneadas por arestas de arame e um sol imenso a iluminar as suas entranhas, até ao mais fundo delas; a vitamina necessária para indeferir as angústias fabricadas de fora para dentro. A sorte que não se indaga.

4.9.18

Anestesia (short stories #23)


Morphine, “Cure For Pain”, in https://www.youtube.com/watch?v=3RJ188KsVyw
          Que império é este em que não se sente nada? Vende-se a alma aos impropérios, sinal da manhã irascível que se compôs à espera que o sangue fervente se acalme. O propósito é alcançado, depois de um módico de insistência. O que sobra assemelha-se a um deserto. Não se vê nada, a não ser a paisagem abúlica, imperturbável, igual que parece ser até que o infinito seja desmentido. Não há gente. Em alturas tantas, a ausência de gente podia ser uma dádiva. Não é quando a sensação do deserto acomete sobre a pele. A gente em redor seria a tradução de algo tangível, a denegação do deserto que tresanda a fatalidade. Os dedos empurram a tela diante dos olhos, como se fosse possível mudar de cenário com um simples gesto. Não acontece nada. E nem o sol alto, que parece crestar o horizonte (a crer pela imagem tremeluzente que vem ao olhar quando ele se projeta no fio do horizonte), provoca o menor desconforto. A anestesia faz os seus efeitos. A anestesia: um estipêndio não aconselhável – a menos que tudo o que se queira seja o exílio forçado, a extração aos lugares adjacentes que não carimbam o sono mitigado. De lugares destes não interessa ser habitante. Na impossibilidade de um refúgio físico (porque nem sempre fugir é hipótese, até por naufragar a hipótese no derradeiro degrau, capitulando à covardia), a anestesia é um isolamento que serve de sucedâneo. Depois, sobram os vereditos impostos ao pensamento. Se o fingimento não for apoquentação, a anestesia é a medida certa para dissolver as dores da existência numa nuvem acastelada. Mas pode o fingimento congraçar uma dor maior. Quem para ela for atirado, acaba por perceber que pior do que o lúgubre lugar onde tem existência é fingir que pode existir, num sonho deslumbrante sem chão para pisar, um lugar alternativo que seja sua antítese.

3.9.18

Guarda-redes (short stories #22)


Depeche Mode, Useless (Kruder & Dorfmeister Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=-QJ4wGJp6uw
Um clássico: o gordo ia sempre para guarda-redes. O gordo só tinha a menção de ser guarda-redes porque era desajeitado, não servia para marcar golos. E o gordo, que não queria ficar de fora, aceitava. Não ajuizávamos como deve ser. Se fossemos nós – que não éramos gordos e tínhamos a mania que seríamos estrelas do jogo quando fossemos espigadotes –, ir à baliza era sinónimo de resignação. Para o gordo, era motivo de orgulho. O gordo, de tanto espaço ocupar no espaço da baliza, compensava a menor destreza para a movimentação com a capacidade para retirar espaço à pontaria dos adversários. Só o descobrimos mais tarde, quando o raciocínio se fortificava nas teias da elaboração. (Ficámos devedores da filosofia.) A vantagem de o gordo ir à baliza era explicada pela lei das probabilidades e pela taxa de ocupação do espaço. Começamos a perceber porque eram tantos os jogos saldados com vitórias. O mérito era do gordo. Confirmava-se que não se ficava a dever aos predestinados dotes dos outros de nós que não queríamos – porque julgávamos função menor – jogar à baliza. (Confirmando-se o preceituado de que não seríamos figuras porque nenhum saiu da cepa torta.) Aprendemos a consagrar os méritos onde eles parecem ausentes. As vitórias não se açambarcam só quando nos atiramos ao ataque. É preciso não dar a guarda ao adversário. As linhas de defesa têm de estar diligentemente montadas. De repente, e em retrospetiva, percebíamos alguns dos lampejos de ingenuidade que atravessaram aqueles anos de juventude.  Só pensávamos em garantir os feitos através do ataque. Nunca demos valor à preservação das linhas sobre as quais tudo o mais se firmava.  Anos mais tarde (julgávamos: já não eram os verdes anos), demos conta de estarem invertidas as variáveis. Tudo se jogava à defesa e raros eram os passos adestrados na alucinante ambição que fora a medida de outrora. Talvez não fosse por acaso que muitos de nós ficamos gordos.