Heróis do Mar, “Saudade”, in https://www.youtube.com/watch?v=xQPv1btZRF0
Sabes, país onde nasci, apesar de em tua terra ter nascido e vivido, não me sinto teu filho. Que mal terá existido entre nós? Concedo: seria mais confortável encerrar as culpas em ti, pela desidentificação que em mim medra quando para ti olho. Mas, concedo também, em grande parte, posso ser eu o equívoco nesta bilateralidade mal resolvida.
Olho para o cartão de cidadão e para o passaporte e lá aparece o teu escudo armilar, país. O teu nome, país, que se incumbe de me conferir uma nacionalidade, com a automaticidade de um selo que vem tatuado pelo território de nascimento. Não julgo, país, que esse critério formal seja suficiente para justificar uma pertença. Não gosto do diapasão da pertença. A palavra, usada neste contexto, esvazia a autonomia da pessoa. Contudo, país (acredita que gostaria de empregar a expressão “querido país”, mas estaria a contrariar o espírito desta missiva e de mim mesmo seria mitómano), sinto em mim a prova viva de que os critérios, formais e legais, que são o húmus da nacionalidade, da identidade e da pertença, em mim não chegam para enraizar os alicerces que os justifiquem. Lamento informar-te, país que me viste nascer, não me sinto teu em nenhum milímetro do meu corpo, em nenhum átomo do meu pensamento.
Tu não és apenas um interminável apanhado de coisas soezes ou de rudimentos em que radica a minha não identificação contigo. Sossega, caso possa suceder que com esta carta te importunes (coisa de que duvido, tamanha a minha insignificância no universo das pessoas que trazem a tua nacionalidade ao peito). Caso estejas em vias de ser tomado pela angústia, tenho para te dizer que em ti reconheço atributos aos quais não tenho pejo em tecer loas. Não será à tua história, e menos ainda à vocação oficial para ela ser ensinada como transcendência, para os petizes acreditarem que fomos predestinados, mas agora estamos reduzidos à insignificância. Não serão expressões de cultura popular distinguidas como sinais vivos da portugalidade, que nelas não consigo encaixar os meus padrões estéticos. Não será a prosápia nacionalista de cada vez que um desportista alcança uma proeza em competições internacionais. Não será a propaganda hodierna que te transformou em banalizado destino turístico à boleia do clima e da vantagem competitiva que é a segurança em que consegues estar. Não serão as qualidades dos teus nacionais, que não consigo distinguir tamanha generalização entre a plêiade de pessoas tão diferentes. Não será o fado, nem o orgulho pátrio quando um dos teus é distinguido por uma sinecura internacional – como se o seu feito fosse o retrato de uma gesta toda ela pátria, em patente diminuição das qualidades (ou dos conhecimentos certos) que legitimam a sinecura desse concidadão.
Tu encerras virtudes, país. A diversidade de paisagens, que não se intimida com a exiguidade do território. Alguma gastronomia. Alguma literatura. O mar. Os rios. O terreno agreste em certas zonas e, não obstante, como houve gente que porfiou para domar essas terras e dispô-las para o uso humano. A tolerância. A convivência com o outro – em ambos os casos, o melhor legado que recebeste dos antepassados que partiram à descoberta. A moderação das pessoas. O sossego que soubeste entranhar nas pessoas, passaporte para a paz reinante.
Contudo, estas virtudes não chegam para arruinar os estorvos que me afastam de ti, país. No sopesar de tudo o que conta, continuo a ver o prato da balança que alberga as coisas negativas a pesar mais. Continuo a sentir que a minha portugalidade é acidental, produto de um acaso, o meu nascimento numa cidade que pertence ao teu território – um fator independente da minha vontade. Por isso, não vejas nesta carta um sinal de desesperança, ou a manifestação de uma desistência, ou até o prefácio de um ceticismo incorrigível. As convenções e as leis obrigam a usar a tua nacionalidade. E isso chega, para nós os dois. Pois nem em ti me revejo, continuando a sentir-me, muitas vezes, forasteiro em teus domínios. E, admito, tu não te revês neste pária (podes-me apostrofar dessa maneira), naquilo que sou e que não quadra com a imagem que de ti fazem.