28.6.19

Carta a um país em que não fui eu


Heróis do Mar, “Saudade”, in https://www.youtube.com/watch?v=xQPv1btZRF0
Sabes, país onde nasci, apesar de em tua terra ter nascido e vivido, não me sinto teu filho. Que mal terá existido entre nós? Concedo: seria mais confortável encerrar as culpas em ti, pela desidentificação que em mim medra quando para ti olho. Mas, concedo também, em grande parte, posso ser eu o equívoco nesta bilateralidade mal resolvida.
Olho para o cartão de cidadão e para o passaporte e lá aparece o teu escudo armilar, país. O teu nome, país, que se incumbe de me conferir uma nacionalidade, com a automaticidade de um selo que vem tatuado pelo território de nascimento. Não julgo, país, que esse critério formal seja suficiente para justificar uma pertença. Não gosto do diapasão da pertença. A palavra, usada neste contexto, esvazia a autonomia da pessoa. Contudo, país (acredita que gostaria de empregar a expressão “querido país”, mas estaria a contrariar o espírito desta missiva e de mim mesmo seria mitómano), sinto em mim a prova viva de que os critérios, formais e legais, que são o húmus da nacionalidade, da identidade e da pertença, em mim não chegam para enraizar os alicerces que os justifiquem. Lamento informar-te, país que me viste nascer, não me sinto teu em nenhum milímetro do meu corpo, em nenhum átomo do meu pensamento.
Tu não és apenas um interminável apanhado de coisas soezes ou de rudimentos em que radica a minha não identificação contigo. Sossega, caso possa suceder que com esta carta te importunes (coisa de que duvido, tamanha a minha insignificância no universo das pessoas que trazem a tua nacionalidade ao peito). Caso estejas em vias de ser tomado pela angústia, tenho para te dizer que em ti reconheço atributos aos quais não tenho pejo em tecer loas. Não será à tua história, e menos ainda à vocação oficial para ela ser ensinada como transcendência, para os petizes acreditarem que fomos predestinados, mas agora estamos reduzidos à insignificância. Não serão expressões de cultura popular distinguidas como sinais vivos da portugalidade, que nelas não consigo encaixar os meus padrões estéticos. Não será a prosápia nacionalista de cada vez que um desportista alcança uma proeza em competições internacionais. Não será a propaganda hodierna que te transformou em banalizado destino turístico à boleia do clima e da vantagem competitiva que é a segurança em que consegues estar. Não serão as qualidades dos teus nacionais, que não consigo distinguir tamanha generalização entre a plêiade de pessoas tão diferentes. Não será o fado, nem o orgulho pátrio quando um dos teus é distinguido por uma sinecura internacional – como se o seu feito fosse o retrato de uma gesta toda ela pátria, em patente diminuição das qualidades (ou dos conhecimentos certos) que legitimam a sinecura desse concidadão.
Tu encerras virtudes, país. A diversidade de paisagens, que não se intimida com a exiguidade do território. Alguma gastronomia. Alguma literatura. O mar. Os rios. O terreno agreste em certas zonas e, não obstante, como houve gente que porfiou para domar essas terras e dispô-las para o uso humano. A tolerância. A convivência com o outro – em ambos os casos, o melhor legado que recebeste dos antepassados que partiram à descoberta. A moderação das pessoas. O sossego que soubeste entranhar nas pessoas, passaporte para a paz reinante. 
Contudo, estas virtudes não chegam para arruinar os estorvos que me afastam de ti, país. No sopesar de tudo o que conta, continuo a ver o prato da balança que alberga as coisas negativas a pesar mais. Continuo a sentir que a minha portugalidade é acidental, produto de um acaso, o meu nascimento numa cidade que pertence ao teu território – um fator independente da minha vontade. Por isso, não vejas nesta carta um sinal de desesperança, ou a manifestação de uma desistência, ou até o prefácio de um ceticismo incorrigível. As convenções e as leis obrigam a usar a tua nacionalidade. E isso chega, para nós os dois. Pois nem em ti me revejo, continuando a sentir-me, muitas vezes, forasteiro em teus domínios. E, admito, tu não te revês neste pária (podes-me apostrofar dessa maneira), naquilo que sou e que não quadra com a imagem que de ti fazem.

27.6.19

Quiosque (short stories #126)


Dead Combo, “Esse Olhar Que Era Só Teu” (ao vivo na RTP), in https://www.youtube.com/watch?v=ZpCOcIttnJo
          Os quiosques deixaram de vender jornais e revistas. Vendem cafés e bebidas e registam os jogos de sorte (ou azar – ou, em homenagem ao rigor, ausência de sorte) da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa. Têm extensões, os quiosques: esplanadas sabiamente à sombra de árvores, para os clientes se resguardarem do calor maçador de que Lisboa é testemunha no Verão. São um cais onde as pernas descansam depois de intermináveis caminhadas que palmilham as calçadas, as avenidas, os becos, os museus, os miradouros, num sobe e desce que torna a caminhada extenuante. São postos de observação para a vida que leva a cidade: os idosos, os seus principais clientes, fazendo o tempo demorar-se; os turistas que mergulham nos mapas e nos guias, para saberem onde estão e para onde vão a seguir, depois de deixarem em cima da mesa canecas de meio litro de cerveja que beberam num ápice; as pessoas que, não querendo consumir bebidas, evitam a esplanada e sentam-se nos bancos de jardim que a ladeiam; os operários que descarregam materiais de construção para o apartamento do terceiro direito que está a sofrer uma profunda reabilitação para engrossar o contingente de turismo local muito procurado pelos turistas; as pessoas que saem da livraria, especulando-se sobre o possível retrato de quem ainda se dá ao trabalho de indagar sobre as novidades editoriais; a senhora que faz a limpeza das casas de banho públicas (situadas na cave vizinha à esplanada, depois de descida uma escadaria pitoresca em forma de caracol) a comer um gelado; um casal de namorados que, noutro banco, se entrelaça de pernas e mãos e deve estar imerso em juras de amor; a faixa evocativa da manifestação do primeiro de maio que ficou perdida entre duas árvores, para lembrar que o primeiro de maio dura, pelo menos, cinquenta e dois dias; o que leva à evocação da liberdade, que começou a ser construída no largo sobranceiro à esplanada, uns metros mais abaixo, e de como não a teríamos se os manifestantes que esqueceram de retirar a faixa evocativa do primeiro de maio tivessem tomado as rédeas do poder. Ou então, a esplanada do quiosque serve apenas para uma imperial bem servida matar a sede, na exata medida dos pensamentos sem tutor que se evadem da observação do meio exterior, para não serem sitiados pelo pensamento comprometido. Os quiosques de Lisboa não merecem tamanha responsabilidade.

26.6.19

O último conhaque da tarde na tertúlia dos reformados


Morphine, “Thursday”, in https://www.youtube.com/watch?v=gyYQYmgTrrI
A luz dispersava-se sobre a sala, enquanto na televisão uma entertainerfalava como se estivesse na feira. Os homens estavam calados, na inversa proporção da vozearia que, desde a televisão, inundava a sala. Estavam calados, mas sem darem atenção ao furibundo, estrepitoso “espetáculo” que tomava conta da televisão e, por arrastamento, da sala. (Um deles obrigou que a palavra fosse grafada, por distanciamento higiénico do que não queria que estivesse a passar na televisão.) Olhavam para os copos de conhaque, como se nas suas profundezas se tivesse alojado um enigma que emprestava ânimo ao entardecer. Continuavam calados e, cada um deles, imerso numa miríade de palavras que desfilava velozmente sobre o pensamento. Com imagens retiradas da memória a entrecortarem o pensamento transbordado. 
Um deles pediu mais um conhaque. O seu copo estava vazio. Com o copo vazio, era como se o fértil campo de palavras se extinguisse e o pensamento ficava deserto. Era preciso mais conhaque. Outro companheiro, e a seguir outro, imitaram-no. Romperam o silêncio para pedirem ao balcão o último conhaque da tarde, antes de se despedirem uns dos outros com um “até amanhã” – seguido de pausa lancinante –“, se Deus quiser.” Enfatizavam a segunda parte da alocução. Com medo, a boca subitamente secando-se quando todos diziam, angustiados, “se Deus quiser”. Sabiam porquê. Todos tinham ido a funerais de mais nos últimos tempos. Os da sua idade, e até alguns mais novos, tinham partido. Era melhor pedir mais outro conhaque. 
Um deles atirou, inopinadamente: “homessa, a juventude tem a mania de intercalar ‘tipo’ entre duas palavras”. Os outros não tiraram os olhos das funduras dos copos, uns meios vazios, outros ainda cheios, um deles já quase vazio. O silêncio demorou-se, tornando-o excruciante para quem deu à ignição ao novo tema de conversa. Eles falavam de tudo um pouco. Eram entendidos de tudo um pouco. Mas ninguém parecia saber da nova semântica que, de acordo com o reformado que lançara o assunto, lesa o idioma. Só algum tempo depois, já o assunto parecia ter abortado à nascença, outro reformado acrescentou-se à conversa: “não te importunes. Em cada geração há modismos na língua. Mudam através dos tempos. Não podemos dizer que os modismos de hoje são um abastardamento do idioma.”
Os copos estavam quase vazios. Uma jovem entrou no bar. Estava aflita, uma graça mal anunciada das necessidades fisiológicas. Perguntou: “onde é, tipo, a casa-de-banho, tipo?” Os reformados que ali faziam tertúlia todos os dias (exceto domingos e feriados) olharam uns para os outros. Um deles, o que tentara explorar a nova semântica da juventude, respondeu com um gesto, o braço indicando o caminho da casa-de-banho. Depois de a jovem entrar sem mais demoras, ele atirou: “estão a ver o que eu dizia?” E outro, indiferente e mais interessado nas efabulações caucionadas pelo último copo de conhaque, cortou a direito: “vamos pedir o último copo de conhaque da tarde, que isso é que importa.”

25.6.19

O último profeta


Pulp, “Common People” (live at Reading 2011), in https://www.youtube.com/watch?v=-XlCFJA3yL4
O nevoeiro corria uma cortina sobre o horizonte, o que não impedia o horizonte; o horizonte apenas emagrecera por ação do nevoeiro. Um ancião dispensava esta metáfora para se alcançar a cegueira mental do último dos profetas. Um ancião ainda mais idoso que, cego desde há décadas, continuou durante anos seguidos a ser credor da confiança dos demais. 
Era interpelado sobre as vicissitudes do mundo, os pressentimentos de tragédias, os momentos acertados para semear as colheitas, as probabilidades de derrotar uma enfermidade, a prevenção de intempéries catastróficas e outros cataclismos (físicos e da alma). Até as entidades religiosas se socorriam dele, em segredo (para não calhar em azar a desautorização eclesiástica, que podia diminuir o êxito confessional junto da comunidade). Até nas guerras o profeta era consultado. Sobre a viabilidade da vitória como pressuposto da guerra, ou sobre os efeitos estimados a partir do momento em que os líderes, com assentimento das autoridades religiosas, decidissem avançar para o pleito. Não se pode garantir que o profeta nunca tenha errado. Terão sido poucas as ocasiões; só os mais idosos tinham uma vaga recordação de um par de vezes em que os presságios do profeta não quadraram com o acontecido. Atribuíam os erros à falta de experiência, quando o profeta discerniu que tinha um dom inacessível ao comum dos mortais. Assim como assim, até os profetas passavam por um tirocínio, confirmando que não eram entidades sobre-humanas.
Ninguém sabia a idade do profeta. Teria mais de cem anos. Conseguiu manter um invejável vigor físico e mental, a prova do seu estatuto superior. Mas tudo tem o seu gasto e nem o profeta era imortal. Começou a proferir frases sem sentido, disparates que soavam ininteligíveis. Ficou acamado. Ainda acamado, já com as faculdades físicas tolhidas, continuava ativo no fervilhar das profecias. Que continuavam a acertar. Com o mirrar do corpo veio o entorpecimento da mente. O profeta deixou de conseguir falar. Ainda foi a tempo de escrever, em má caligrafia devido às mãos trémulas, um par de profecias antes de perder o juízo. A comunidade entrou em pânico. O que seria dela, agora que perdera a vantagem de conseguir adivinhar o porvir por ausência do profeta? 
Houve um herege que, desconfiando das capacidades do último profeta, lançou uma interrogação provocatória: e se o profeta fosse um falsário, e todos os demais, crentes nas suas profecias, falsários também, e as profecias não fossem profecias, mas apenas o regular dos acontecimentos para serem a expressão fidedigna das profecias alinhavadas? 
A comunidade levou algumas gerações até aprender a viver sem profeta. Perderam-se colheitas, algumas embarcações de pesca naufragaram e levaram homens para o fundo do mar, uma ou outra tempestade inesperada agravou o caos momentâneo. Mas deixou de haver tantas doenças com diagnóstico tardio e não houve uma única guerra perdida (porque nenhuma foi a guerra em que a comunidade entrou). 
Nessa altura, com a demora de algumas gerações, a comunidade passou a regular-se por uma metafísica diferente, acreditando nas suas próprias capacidades. Não precisavam de profetas. Só ficou por saber se o novo estalão metafísico era função das circunstâncias (nunca mais nasceu um profeta), ou ser era autêntico. 

24.6.19

KISS (keep it simple, stupid)?

Davendra Bahnart, “Kantori Ongaku”, in https://www.youtube.com/watch?v=WB5Gypm4fHo
Epistemologia da escrita: a simplicidade é o mais difícil estalão de alcançar? A simplicidade corresponde à autenticidade da escrita, despida de ornamentos frívolos e fórmulas que conjeturam a complexidade como meio de exaltar o espírito elevado dos criadores?
Há quem assegure que a simplicidade é o desiderato primeiro da escrita. Os eruditos – sobretudo os que ostentam a sua garbosa condição erudita – não o admitem. A simplicidade, argumentam, é a parte fraca dos fracos, dos que desconhecem a cultura clássica e ignoram que a estética de um texto não traz a simplicidade como passaporte de mérito. Argumentam que se a simplicidade é o idioma corrente, corre-se o risco de confundir simplicidade com desconhecimento de regras mínimas sobre gramática e sintaxe, entortando o texto com as entorses de que fala popular é paradigmática.
Do lado contrário da trincheira, os que admitem que a simplicidade da escrita é a sua sublime condição. E que a simplicidade, sem se confundir com o abastardamento do idioma, é uma empreitada difícil na exata medida da escolha criteriosa de vocábulos simples, em orações curtas e de fácil entendimento. Quanto mais hermético se tornar o texto, mais difícil é a hermenêutica. Mais se expõe a diferentes entendimentos em função das diferentes grelhas de análise de quem os lê. 
Há neste raciocínio um equívoco: não se entende como a pluralidade de significações pode ferir a qualidade de um texto. E isso é independente da simplicidade ou da complexidade de um texto: ele pode conter palavras simples que, todavia, escondem múltiplas variáveis, mais ou menos ocultas, que desdobram os possíveis entendimentos do texto. Sobrepondo-se a este juízo, está a questionabilidade do axioma que advoga a superioridade dos textos simples. A metáfora da gastronomia vem à colação. Dizem: a melhor gastronomia é a que se despe de ornamentos e de criativas reconstruções; a melhor gastronomia é a tradicional, segundo os preceitos passados de geração em geração. Invocar-se-á a indiscutibilidade de um cozido à portuguesa, ou do bacalhau de consoada: nada se superioriza a pratos tão simples e, ao mesmo tempo, tão representativos da cultura popular. São imbatíveis, por mais elaborada e requintada que seja a gastronomia que se reinventa com o esmerar de sucessivas gerações de chefes de cozinha. Com a escrita acontece o mesmo.
Nada é assim tão objetivável. Há momentos em que nos apetece degustar um prato pertencente à cozinha tradicional e apreciar os métodos simples que são seu apanágio. Há outras alturas que não se recusa a reinvenção da gastronomia, com interpretações de autor a pratos tradicionais, ou com iguarias que são a emulsão da criatividade. O resto fica para o julgamento do produto final. Sem preconceitos operativos, antes de apurar o julgamento. Pois um texto passado pelo filtro da simplicidade pode ser melhor do que um texto candidato ao entendimento de eruditos, como o contrário. Os vereditos contundentes que arrumam tudo em categorias, como se fosse possível tanto hermetismo classificativo, são o ardil que industriam perigosas generalizações.
Pode haver momentos em que o texto exige simplicidade. E outros que quadra com a complexidade. Sem nenhuma garantia, em ambos os casos, de distinção ou de denegação de mérito. O estilo não se pode confundir com a substância do texto.

21.6.19

O jogo em aberto (short stories #125)


PJ Harvey, “Crowded Cell”, in https://www.youtube.com/watch?v=3NSbu93HlNQ
          Um tabuleiro de xadrez. As peças expostas, já depois de algumas jogadas. Não havia rostos por perto. Parecia um jogo de fantasmas. Não era. Um dos jogadores era permanente, o dono do tabuleiro. O outro era plural. Anónimo, na sua pluralidade. O jogador a que se conhecia o rosto não conhecia o rosto (e a identidade) dos adversários. Era um jogo em aberto. Aberto a quem quisesse ser adversário do dono do tabuleiro. Este sabia que havia uma jogada quando quem movia uma peça premia o relógio que iniciava o prazo para a réplica. O dono do tabuleiro jogava contra um número indeterminado de adversários. Não sabia dizer quantas vezes ganhara e quantas vezes fora desfeiteado. Não importava. Todo o seu tempo era livre e, por todo o tempo que era livre, visitava várias vezes ao dia o tabuleiro, de cada vez que um anónimo adversário movia uma peça. A páginas tantas, começou a inventariar identidades-fantasma dos jogadores-fantasma que com ele se articulavam no jogo de xadrez em aberto. Havia jogadas que se repetiam de cada vez que ele repetia uma jogada. Variantes dessas jogadas, que eram o farol por onde se guiava para adivinhar se tinha sido o adversário A, ou B, ou C que tinha movido um bispo em resposta a um avanço da torre, ou a rainha à defesa de uma investida ousada de um cavalo (prontamente sacrificado), ou um peão a ameaçar a posição de um bispo desguarnecido. O que o dono do tabuleiro não sabia é que os adversários anónimos pressentiam que ele pressentia as suas jogadas, disfarçando movimentos para não serem apanhados num ritual que os denunciasse, sem prejudicarem o seu anonimato. Todos continuavam a ser perfeitos desconhecidos para todos. Até porque todos tinham um código de honra, que souberam honrar, que os impedia de se porem de atalaia para descobrirem a identidade dos adversários. Era um xadrez de máscaras. A metáfora perfeita da coexistência.

20.6.19

O marégrafo dos corpos (short stories #124)

Stereossauro ft. Gisela João, “Vento”, in https://www.youtube.com/watch?v=0wOh5mdfoUk
          O sangue alto invade as veias e o tumulto toma o corpo de assalto, em fruição absoluta. Os corpos, em sua combustão, transidos como só em combustão podem estar, dão-se à maré. Fazem eles próprios uma maré. Uma caudalosa maré. Não cabem dentro do leito que as convenções mandaram ser o atilho dos corpos. É melhor que seja assim. Insubmissos, rebeldes, marginais quando se antepõem as regras – é melhor que os corpos sejam assim. Uma autoridade tutelar considerou a hipótese de construir um marégrafo, uma rede de marégrafos, para domar a rebeldia dos corpos. Não era uma autoridade eclesiástica, o que confere mais estranheza à ingerência de engenharia social. Dir-se-ia que as autoridades são competentes, mas só no ato da contumácia do desejo, uma coorte de frígidas e impotentes. São ardilosamente, escandalosamente, beatamente contrárias ao eflúvio onde se ateia o desejo dos corpos que atuam como seus mandantes. Ninguém obedeceu. Nem quando as autoridades, num risível remoçar da autoridade (para fazerem jus ao nome), quiseram sancionar pesadamente as infrações quando sinalizadas pela rede de marégrafos. Não conseguiram. Os corpos transbordaram de tal arte que os marégrafos perderam o norte. Esgotou-se-lhes a tinta, tantos os movimentos sísmicos que anotavam, a toda a hora, intensamente. O marégrafo dos corpos limitava-se a conferir a maré brava que era emulsão dos corpos ferventes. As autoridades, perdidas no lúgubre, meão estalão da sua incompetência, foram julgadas à revelia pelos corpos que se incensavam na combustão insubmissa. O marégrafo, a rede de marégrafos, avariou. Não foi capaz de responder à maré bruta, à maré-viva, que durante dias ameaçou levar o aquecimento global para níveis nunca vistos. Os corpos ensinaram que não toleram peias. As autoridades, tributárias de anacrónicas seitas pagãs, deviam ter aprendido com a história e o descaminho das religiões que se escandalizam com o desejo. As camisas-de-forças que intimidam o desejo não são boas conselheiras. Acabam por aprisionar quem queria ser algoz dos corpos alheios. 

19.6.19

Vias de extinção (short stories #123)


Imploding Stars, “Midlife”, in https://www.youtube.com/watch?v=ntFdXNp_DR0

(Monólogo de teatro, excerto. Som de fundo: o longínquo grito surdo do navio que anuncia a entrada no porto e um ruído indiferenciado de automóveis e de vozes de pessoas sem rosto.)
            Provavelmente. Digo sempre provavelmente. Não me convencem as estórias perfeitas, digo, as estórias que se querem fazer passar por perfeitas. Há, algures, uma vírgula a destempo, o parágrafo indevidamente articulado, o equívoco dramatúrgico (descontando a necessária subjetividade), um adjetivo dispensável, o verbo que podia ser outro. A mentira redonda. Provavelmente, nada disto está no texto. E, mesmo assim, ele não pode ambicionar a perfeição. Que autor pode ambicionar a perfeição? Tutele-se a reescrita, as vezes que forem necessárias, até o texto quadrar com o contentamento do autor. Mas o contentamento é volúvel. O que hoje o cauciona pode estar ausente no dia seguinte. O texto que hoje é tido como acabado pode, provavelmente, ser olhado com desconfiança no dia a seguir, vertido na cidadela do inacabado. O melhor será considerar, arbitrariamente, o momento em que o texto atinge seu remate; o epílogo dentro do epílogo. Para confiança do texto, e de seus efeitos para memória futura, talvez seja preferível não voltar a ele. Provavelmente, haveria umas palavras a substituir, uma frase inteira recusada, um final diferente, um advérbio de modo a mais. Alguém terá dito que a escrita é uma escravatura. Terá havido autores que não passaram de um texto, desistentes perante a impossibilidade de o darem como perfeito. Seriam homens e mulheres banhados numa tremenda modéstia, muitos deles considerando-se os piores da sua espécie. Outros, para não serem reféns de um interior, diabólico labirinto, teriam apalavrado a indiferença ao produto do seu pensamento. Passariam à frente, depressa remetendo ao oblívio os textos que pertencem, e depressa pertencem, ao pretérito. Um jogo abismal, com uivos murmurando de todos os lados, rostos velozes sobrepondo-se na tela do autor, uma constelação de memórias comprimindo o seu corpo arqueado, as forças exauridas de tanto sopesarem em tão árdua empreitada. Os textos são a metáfora perfeita das vidas (descontando a subjetividade da perfeição).

18.6.19

Aprender a vida

Imploding Stars, “Birth”, in https://www.youtube.com/watch?v=70uuA7X5uAc
Que horas são? Não sei. Não quero saber do paradeiro das horas. Não sabes que o tempo é uma adversidade para a vida? Não sabes que o tempo abrevia a medida que nos separa da morte? Como podemos consagrar o tempo se ele obedece a esta propriedade, como se fosse o perene algoz que nos empenha ao efémero? Talvez se o cultivares no avesso das suas medianas costuras; se, em vez de ser o diapasão de uma subtração, for a medida de uma soma e se, através dessa soma, se estimar a prodigiosa vida que em seu dorso levita.
Um dia, alguém me disse: “a vida é uma demorada apneia”. Discordei imediatamente. Uma apneia simboliza a resistência contra um elemento exterior, a necessária suspensão da respiração como condição para a sobrevivência. Viver não se pode limitar a ser sobrevivência. Se o for, é uma capitulação. Agonia disfarçada de vida. A forma ideal de sucumbir às contrariedades que se oferecem como litania que arrefece o mister da existência. Discordei imediatamente: até porque se há algo que a vida nunca é, é uma demora. Nem para os nonagenários. E por ser uma brevidade é que ela exige que se procure conhecer o seu tutano.
Não conhecia a pessoa que me confidenciou, entre duas garfadas num jantar cerimonioso, que a vida é uma “demorada apneia”. Não retive os traços do rosto, nem me lembro de mais nada que tenha dito, nem do nome. Não voltei a ver aquele homem. Não pude deixar de interiorizar a frase, dita com uma angústia indisfarçável. Às vezes, tenho medo de encontrar pessoas que parecem derrotadas pela própria vida. É como se lutassem contra a vida e apenas estivessem à espera que a morte seja um arrebatamento misericordioso. Tenho medo, não por temer que o rosto macerado pela capitulação seja contagioso; julgo saber dar conta do que intuo ser a necessária proteção contra estes contratempos, que não chegam a coincidir com o vocábulo. Tenho medo porque me inquieta saber da existência de existências consumidas por um fogo permanente, de vidas que desistiram de o ser. Não que seja propenso a olhar com cuidado para as vidas outras; e não que isto signifique uma dose de comiseração que traz ao conhecimento uma angústia por osmose, pois não consigo saber o que é sentir as dores dos outros, nem a impossível multiplicação do tempo seria caução suficiente para ajuizar a melancolia dos outros. 
É por isso que trato de escapar à convivência com os derrotados pela vida. Não quererem saber aprender com a vida é um desígnio que esvazia a sua vida de significado. Não consigo perceber como pode alguém torturar-se persistentemente desta forma. Sinto o desassossego a acidular a boca. Não travei conhecimento com o que motiva este desaprender da vida, o desapego que traz o precipício da morte para tão perto. Pode haver fundamento – a perda, o desamor, a infelicidade, contratempos que pesam na balança que afere a luminosidade que se empresta a uma vida (ou a falta dela). Nada se consegue sobrepor à dádiva que é viver. Por mais que sejam férteis os ingredientes da angústia, eles não conseguem pesar mais do que o tão simples ato que é viver, com tudo o que viver deixa de gigantescas possibilidades de aprendizagem.
A vida é um ato permanente de aprendizagem (o contrário de uma demorada apneia). Quem recusar a humildade da aprendizagem, já pouco conta no balancete das vidas que se jogam no xadrez contínuo. Faz figura de corpo presente.
- Percebes agora da estultícia de querer estar sempre a saber que horas são? Queres saber quanto tempo te falta para a morte, ou do crédito do tempo que tens para cuidar da vida como uma homenagem à vida que faz dela credora?

17.6.19

Corredor de fundo


Joy Division, “I Remember Nothing”, in https://www.youtube.com/watch?v=YYo6jfIxtao
Há oito anos: entrevistou os rapazes da banda na primeira vez que deram um concerto no país. Notou o à-vontade dos músicos, ainda aprendentes, ainda arroteando um caminho que não sabiam se haveria. (No imenso viveiro das bandas pop-rock-indie, a larga maioria fica pelo caminho e das demais sabe-se apenas pouco.) O vocalista confessou que não se sentia à vontade quando aparecia diante da audiência. Refugiava-se no vinho. Segundo ele, o vinho desamarrava as peias que medravam na sua incorrigível timidez. O resto, mais pareceu uma conversa de bons amigos. Depois da entrevista, ficou combinado que os músicos e o jornalista iam pela noite fora, sob os auspícios do segundo, que seria cicerone. 
Oito anos depois: a banda ganhou nome no mercado internacional. Nome e, faz-se constar, fama e dinheiro. Os músicos estavam de regresso para um concerto. O jornalista foi escalado para uma entrevista e para escrever sobre o concerto. Usou os contactos pessoais trocados há oito anos. Os telefonemas não eram devolvidos. Os emails ficavam sem resposta. Deu o benefício da dúvida: os “rapazes” estão muito atarefados, entre os vários concertos e as viagens de terra em terra, de país em país, que intercalam dois concertos. Não atribuiu importância ao silêncio. Há oito anos, após o concerto inesquecível, a noite de que foi cicerone foi formidável. Ficaram amigos para a vida, não cessava de dizer, nos meses seguintes, aos do seu círculo mais próximo.
No dia do concerto, o jornalista foi ao hotel onde estavam hospedados os músicos. Os músicos eram os mesmos. (Muitas vezes, as bandas pop-rock-indierefazem-se, entre saídas e entradas de músicos, apalavrando zangas ou apenas divergências artísticas ou estéticas.) Há oito anos, ficaram num hotel de três estrelas e tiveram direito ao jantar, pago pelo promotor do concerto, num restaurante mediano. Desta vez, o hotel era de cinco estrelas e, soube o jornalista, os músicos fizeram exigências entre o banal, o risível e o extravagante. Seriam as alcavalas da fama entretanto creditada. 
O jornalista chegou à receção e, depois de se identificar, pediu para entrar em contacto com o vocalista. Do outro lado respondeu uma voz entre o ensonado e o snob. Ao início, o músico deu a impressão de não se lembrar do nome do jornalista. Este fez questão de lhe avivar a memória com a noite memorável de há oito anos. Depois de alguma hesitação, o músico anuiu em descer ao bar do hotel. Demorou quase cinquenta minutos a fazê-lo. Comprovadamente, não se lembrava do rosto (e muito menos do nome) do jornalista com quem partilhou uma noite de boémia há oito anos. O jornalista, para evitar a humilhação, esquivou-se a recordar o acontecido. Limitou-se ao papel profissional, debitando mecanicamente um rol de perguntas preordenadas. Foi uma entrevista rápida. O enfado do músico não era incentivo para conversa demorada.
As despedidas foram frias. O jornalista nem sequer desejou um bom concerto. E só iria ao concerto porque foi escalado pelo jornal. À saída do hotel, disse de si para si mesmo, em surdina: “estes famosos que são atraiçoados pelo vedetismo...não sabem como a fama é efémera.” E, como se estivesse a dirigir-se ao músico, rematou, vítima da sua tremenda ingenuidade e do orgulho ferido pelo não reconhecimento: “aposto que cairás no esquecimento daqui a uns anos, quando a tua banda desaparecer dos palcos. E eu continuarei por aqui, a ser jornalista cultural. É a diferença entre um vaidoso e um corredor de fundo”. 

14.6.19

E ao antepenúltimo dia de primavera, criou um grupo clandestino para boicotar os guarda-chuvas que boicotavam a chuva


Jambinai, “Small Consolation, “in https://www.youtube.com/watch?v=9GRb7kRN1q8
Que canseira – alvitrou, enquanto suava pelas estopinhas sob o sol tardio e, ainda assim, prontuário de uma canícula que era um presságio. Faltavam três dias para o verão. Aquele calor abrasador era mais propício ao epicentro do verão, mas era para as pessoas se irem habituando. O verão tem uma única virtude – alinhavou em pensamento: são aqueles raros dias de chuva, após uma série quase interminável de dias soalheiros e de uma temperatura de ananases. Essa chuva que tempera os excessos do verão e que liberta um aroma sensual que provém da terra ressequida. E a terra parece agradecer com esse aroma prodigioso, por ter sido distinguida com a chuva.
O suor continuava a inundar o corpo e, por arrastamento, a roupa. Passou por uma loja de recordações, daquelas lojas em cada vez maior número, ou não fosse a cidade um expoente do turismo (para gáudio do presidente da câmara). À porta da loja, em absoluto exercício paradoxal, um amontoado de guarda-chuvas, numa constelação de cores em sinal do cosmopolitismo excessivo que tomara conta da cidade. Estava-se nas tintas para as hordas de turistas e para a ideia de cosmopolitismo excessivo e para a discussão sobre a prodigalidade do turismo. Fixou os guarda-chuvas com um olhar colérico. Estavam a destoar, como se fossem a plausível provocação para alguém, como ele, que se sentia torturado com tanto calor. Mas a provocação maior levou-o a escrever, em letras garrafais, um lembrete no caderno que andava sempre consigo: “NÃO ESQUECER DE FORMAR UM GRUPO DE BOICOTE AOS GUARDA-CHUVAS QUE BOICOTAM A CHUVA”.
Não perdeu tempo. Conhecia outros como ele, que, se pudessem, se exilavam durante a estação estival para latitudes onde fosse garantida temperatura moderada e alguma chuva. Partilhou a sua indignação e perguntou se estavam interessados em partir para a ação direta. A formação do grupo, imperativamente clandestino, só faria sentido se passassem dos protestos à ação. Seria necessário formar brigadas que inventariassem os lugares onde são comercializados guarda-chuvas. E, ato contínuo, amordaçar os funcionários das lojas e consumar a destruição dos guarda-chuvas.
Para nada ser ao acaso, esboçaram um plano de contingência, caso fossem presos em plena função. Se fossem levados a tribunal, invocariam em sua defesa que o boicote era uma repristinação antecipada de outro, e mais importante, boicote: o boicote da chuva, perpetrado pelos guarda-chuvas. Seriam levados a instar a Academia de Letras a repensar o nome do objeto, pois o objeto não guarda a chuva, limita-se a impedir que as pessoas sejam consagradas pelo dom sublime que é saberem-se encharcadas por uma chuvada. Em sua defesa, como argumento de última instância, trariam à colação o crime de lesa-pátria que é a chuva rejeitada pelos guarda-chuvas: toda a chuva neles retida assassina a imagem poética que vem do aroma libertado pela terra descarnada quando recebe as primeiras gotas de chuva. Haveria de haver um juiz com sensibilidade poética.

13.6.19

Saliva


Stereossauro ft. Camané, “Flor de Maracujá”, in https://www.youtube.com/watch?v=gy0pUfh1X78
Era o comando da língua, a boca artilhada para povoar a miríade de palavras que compunham as ideias, ou a boca limitava-se a ser o instrumento ao serviço do pensamento? De tanta saliva afirmada, dir-se-ia ser o império da boca. Sem a saliva não seria possível pronunciar todas aquelas palavras. E sem as palavras, as ideias ficariam remetidas ao anonimato.   
Era preciso louvar a saliva. O instrumento radial do pensamento – alguém o afirmou, exortando os demais a seguirem a ideia. No fundo, era uma ideia antes das outras ideias que vinham à boca de cena através das palavras encenadas no bojo da saliva. Havia um encadeamento lógico que merecia atenção. Os mecanismos são interdependentes. Pode parecer que há variáveis dependentes e variáveis independentes; poder-se-ia garantir que, nesta lógica, a saliva era a variável infinitesimalmente dependente e o pensamento, o bastião do sistema, a variável independente. A atenção requerida punha em causa a lógica exposta. Outra vez: sem o ingrediente da saliva, as palavras que compunham as ideias ficavam suprimidas.
Talvez fosse especulação sem regimento. Interessava acautelar as relações sistemáticas entre saliva, palavras e ideias? (Ou, para os puristas, para obedecer aos cânones que impõem uma ordem lógica: ideias, palavras e saliva.) Não eram todos parte do mesmo todo? Não se reconhecia que sem uma das partes as outras ficavam comprometidas? Como podiam soerguer-se palavras em articulada inteligibilidade se elas não fossem a tradução das ideias? Como podiam as ideias ter veículo se a saliva estivesse em falta – ou se a voz tivesse decaído, afónica? Sempre se poderia argumentar que as ideias não precisam da voz, o mesmo acontecendo com as palavras: em vez da voz, elas podem encontrar a escrita como veículo de eleição.
Mas não foi essa a premissa. Partiu-se da identificação de três ingredientes da relação sistemática: saliva, palavras e ideias. Na confluência de um movimento arbitrário, convinha dissecar os átomos em que se decompõe cada mililitro de saliva. Para apurar os genes das ideias que possibilitam o salivar. E para ajuramentar que até a saliva inofensiva tem um húmus feito de ideias. A saliva transporta ideias. E da saliva vê-se como determinadas ideias (das mais especulativas às mais sensoriais) dela carecem, sob pena de ficarem aquém do que intuem ser.

12.6.19

Herança


Jarvis Cocker, “Further Complications”, in https://www.youtube.com/watch?v=AzpxtSmEL9s
Guardo na pele a camada que vem de trás, a roupagem plúrima que investe contra a anestesia dos sentidos. Em sentindo dúvidas, festejo. Em havendo rudimentos que prescrevem as arestas das certezas, duvido. Não há nada nesta herança que corra o risco da prescrição. 
Não sei delimitar o alcance da herança. Dir-se-ia, para comodidade das convenções, que é um legado recebido – das pessoas que exerceram magistério, dos lugares que encontram lugar perene na memória, das palavras lidas e que ficaram tatuadas na ossatura, do teatro e do cinema, da música, de incisivas circunstâncias que foram parte do molde em que me cingi. Mas a herança talvez seja, também, o que deixo para memória futura. O que deixo sem contar, sem um propósito assim encenado. De mim há de sobrar um módico qualquer. Não faço da proclamação uma razão de existir: o que terá de acontecer será sem ser forjado, apenas guiado pela conjugação de circunstâncias que se jogar a favor. 
Adormeço a pensar no que hei de colher da árvore onde se aloja a herança, depois da alvorada. Sonho com isso. Muitas vezes, o sonho não é a véspera de uma confirmação. O tempo macerado após a alvorada trata de desmentir o oráculo agigantado durante o sonho. Fico a saber que o oráculo é uma farsa. (E não o são todos os oráculos?) Convenço-me da inutilidade do tirocínio dos sonhos. Eles são matéria com vontade própria. Cuidam do seu próprio vazio à medida que juntam as peças que os tornam, quase sempre, a imagem fidedigna de um palco onde o surreal se sobrepõe. Admito demitir os sonhos da medida onde cabe a herança.
Por vezes, pergunto se a herança não amordaça a vontade. A herança não se recusa; é um dado que se embebe na medula e dela não pode ser removido. Só que, por vezes, o corpo sente-se sitiado na moldura da herança. É como se procurasse correr por entre estreitos corredores, mas o espaço exíguo se insubordinasse contra a ousadia do corpo, restringindo-o. Não se pode nada contra a herança. Mais vale não lutar contra ela, porque nos encontramos a lutar contra o húmus em que medramos. Antes transformar a matéria que transborda da herança, adotá-la sem ser um remédio que aplaca a vontade contrariada. De fora de nós não somos nada. Mas o que em nós habita pode não chegar para de nós fermentar uma identidade. 
Por tudo isto, decretei, para memória futura, que não quero que ninguém seja coagido pelo que possa vir a ser entendido como a minha herança.

11.6.19

Tolerância de ponto (short stories #122)


Sonic Youth, “Bull in the Heather”, in https://www.youtube.com/watch?v=8JGBNkLM9_8
          Quantos vértices de impaciência são precisos para transbordar a calma? Depende dos dias. Depende das vociferações interiores, se elas gritam ou se ficam pelo inofensivo sussurro. Há um manto à espera: o manto que costura as bainhas da tolerância a que se convertem até os obstinados. São como esquilos que demandam por mantimentos na órbitra dos transeuntes do parque. Na sua azáfama, não se consomem nas consumições dispensáveis que podiam ser o púlpito da atenção, se não se desse o caso de a tolerância de ponto alinhavar outros mandamentos. Não tem nada de cristão. (Podia-se comparar com a imagem do outro lado do rosto que se serve ao segundo esbofetear.) Na tolerância de ponto, somos a grandeza singular que não se encontra nos outros, sem que a formulação encerre a anulação de si mesma. (Por todos sermos a antinomia dos demais e estes se posicionarem em contraposição dos primeiros.) Cada história individual é um frémito de individualidade, não é uma blasfémia aos olhos dos cânones (ditos) irrepreensíveis. É irrepetível. Podemos, no lugar individual que cada um ocupa, sentir o apelo da tolerância sem que ela seja esgrimida contra a tolerância demandada por outros. Correm em lugares paralelos, não são mutuamente excludentes. Sobrepõem-se, todas estas tolerâncias de ponto, até se tornar respirável o ar que é património partilhado. As sirenes emudecem. Toda a música se cala. É preciso ouvir o silêncio. Embeber-se nele. Tanto faz que seja um fragmento do tempo, ou que seja demorado. Há um certo reinventar da civilização que medra no pulsar amaciado do sangue. Não é sinal de fraqueza. Não é, como parece, mesmo quando os sinais exteriores mostram um rudimento de capitulação. O verbo mais forte é o que fica escrito nas paredes demoradas. Esse não é o verbo dito em primeiro lugar, no tumultuoso pedestal que depressa se estilhaça sob o vento que adorna o verbo precipitado. São as esculturas onde se anotam, meticulosamente, as frases que resumem o silêncio. Foi o que aprendemos com a tolerância de ponto.

10.6.19

Ghost writer


Trentemøller, “Sleeper”, in https://www.youtube.com/watch?v=aBpptzB9qEA
vexato quaestio: seria capaz de ser o escritor fantasma de mim mesmo? – perguntou-se.
Não seria sobre transversalidade de personagens, ou sobre a multiplicação de personagens que nidificam no mesmo eu. Seria diferente: partir de um texto e sair do eu que o escreveu para o reescrever de acordo com as coordenadas que seriam pertença de uma transfiguração do eu. De um eu diferente do eu-ponto de partida, o outro-eu. No final, comparar os dois textos. Possivelmente, cerzi-los nas diferenças, onde fosse possível arrumar as arestas para os textos se encaixarem. Mais importante: sublinhar, a tinta fosforescente, as diferenças sem conciliação. Não tentar perceber o que dera origem a esse fosso. Anotá-lo. Simplesmente.
Tarefa segunda: embebido no outro-eu que se emancipou do eu-ponto de partida, esboçar um texto desde uma folha em branco. Um tema qualquer – o primeiro que viesse ao bornal. Partir de um pressuposto: o outro-eu habita nos antípodas do eu-ponto de partida. Seja lá o que isso signifique. A mundovisão alternativa serve para rasurar as omissões admitidas no eu-ponto de partida. Talvez, uma farsa: as ideias, ou muitas delas, vogam na antítese das que são património genético do eu-ponto de partida. (Desde que o eu-ponto de partida fosse capaz de as identificar, sob pena de se tornar mais complexa a tarefa do eu-outro.) Ato contínuo, o texto assim formulado seria apresentado à grelha de análise do eu-ponto de partida. Ser-lhe-ia exposto o desafio da reescrita, usando a sua grelha de análise. Para surpresa de todos os envolvidos, o eu-ponto de partida não seria capaz de expor posição diametralmente oposta. Seriam de pormenor as diferenças, estilísticas e não sobre a substância.
De regresso à tarefa primeira, ao eu-ponto de partida seria pedido para reler e, se necessário, rever, o primeiro dos textos (aquele que foi apresentado à apreciação do outro-eu, tendo sido por este profusamente modificado). O eu-ponto de partida rejeitaria a paternidade desse texto. Alegaria não se rever no texto; nem na substância, nem no estilo. Correspondendo a outro desafio formulado, o eu-ponto de partida atirar-se-ia à revisão do texto. Hesitaria, ao início: consideraria serem muito díspares as suas condições analíticas e as que emergiam do texto que agora passava sob o seu olhar. Derrotadas as hesitações, conseguiria reescrever o texto. Seria quase igual ao texto que tivera sido reescrito pelo outro-eu. As diferenças seriam de pormenor.
O escritor fantasma de si mesmo era um logro. Não podia dele ser fantasma por com ele comungar a mesma grelha de análise. Só faltava saber quem era o original e a imitação. Os dois concordariam em acertar os termos do acordo, dispensando-se de responder ao pleito.

7.6.19

Escafandro


The Divine Comedy; “Queuejumper”, in https://www.youtube.com/watch?v=F-zxAo1ImIg
O estado comatoso do escafandro: a concentração de salitre ameaça corroê-lo e a ferrugem toma conta de partes substanciais do material de que se compõe. É sinal do ambiente hostil a que o escafandro vai. Ao mesmo tempo, é sinal da proteção que confere a quem sabe não poder enfrentar o meio ambiente sem a proteção do escafandro. 
No tumultuoso pesar lá fora, é preciso um manto protetor. É arriscado sair sem escafandro. O ar contaminado pode adulterar a lucidez. Pode ser que errático seja o caminho no imponderável devir assim contaminado. Há gente que não dá conta e se entrega ao ar contaminado, aparentemente andando sem sobressaltos. Sabe-se mais tarde – as estatísticas confirmam-no – essas são as pessoas acometidas pelas maleitas avulsas propagadas pelo ambiente hostil. Consta que não há cura. Uns ficam reféns de loucura virulenta. Outros caem num coma sem remédio. Outros saem à rua e vagueiam até mirrarem, consumidos pelo sangue emaciado. Outros, sem físicos sintomas de doença, aparecem em lugares insólitos em poses insólitas, absortos, incapazes de dominarem a vontade. Não sabiam que o mundo exterior pode ser fatal.
Está decadente, o escafandro? Os muitos pontos de ferrugem, depois da sua exposição a este salitre insalubre que adultera a atmosfera, sugerem-no. E se o escafandro está decadente, aumenta a exposição aos nutrientes putrefactos da doença que se contamina só pela exposição ao ambiente exterior? Só se não houver destreza para reparar o escafandro. Os pontos de ferrugem devem ser raspados. Uma substância é usada para a sua dissolução. Depois, o escafandro submete-se a uma decapagem geral, antes de ser envernizado com o reforço de uma matéria que atrase a corrosão. Não se tenha a pretensão de ter um escafandro à prova de contrariedades. Os agentes exteriores são altamente cáusticos. Exige-se uma periódica operação de manutenção do escafandro. Como prova de sobrevivência.
O escafandro é, todavia, uma frágil proteção. Consta que os agentes agressivos que estão escondidos no meio exterior têm vindo a reforçar a sua abrasão e a resistência aos tratamentos por que passam os escafandros. Temem (os observadores muito atentos e estudiosos do assunto) que os escafandros possam perder utilidade num tempo próximo. 
A epígrafe da sociopatia, sob caução do escafandro, pode estar em causa. Paradoxalmente, para desgraça da espécie.

6.6.19

Jogar às escondidas


Neneh Cherry, “Kong”, in https://www.youtube.com/watch?v=W6ivBXh1zGQ
Era a tarde vagarosa, em seu lento desaguar no ocaso. As mesas da esplanada pareciam o leito da displicência. Até os pássaros tinham hibernado, eles que ao entardecer se reativam na demanda por alimento e na coreografia dos namoros. Talvez houvesse quem jurasse que tudo se adiava para um dia posterior – e nada seria perdido por dentro do adiamento. As escadas paradas rimavam com a flanela deitada para o armário da roupa de inverno, agora que a primavera tardia finalmente se aconchegava no regaço do verão. A pele ficava mais à mostra.
Todavia, as pessoas escondiam-se. Umas das outras. Escondiam-se, acima de tudo, de si mesmas. Não amplificavam a sua existência através de uma lente desproporcionada. Pelo contrário. Refugiavam-se numa modéstia inusual. Viam-se de tamanho pequeno, mais pequeno do que a imagem desenhada pelos espelhos que se soerguiam ao olhar. Jogavam às escondidas, num processo que se multiplicava em diferentes camadas. Primeiro, escondiam-se de si mesmas. Depois, reproduziam o processo ao serem exiladas diante de todas as outras pessoas. A geografia ficava deserta de pessoas, tanta a azáfama em todos jogarem às escondidas de todos.
O relógio da catedral não caucionava estes fingimentos. Metodicamente, as sincopadas batidas dos sinos anunciavam a hora certa. As pessoas podiam fingir, entregando-se a um teatral jogo das escondidas, como se precisassem de um lúdico, infantil momento para ocultarem as dores excruciantes que as sobressaltavam. Mas esse era um fingimento que não podia ter uma densa camada de verniz. Ao menor chamamento das contrariedades, sopesava a farsa com o choque frontal com o diuturno rosto do dia. O indesmentível acometimento repudiava outros jogos florais, o arremedo de hibernação como pretexto para embaciar as de si baças lentes que transmitem a cores o lado desprezível da existência. Quem se entregava a este jogo estava convencido que era heteróclito, um pária.
E nem assim as pessoas enfraqueciam o jogo das escondidas. Aproveitavam ao máximo as telas adornadas que desfilavam diante do pensamento, enquanto se entregavam ao jogo. Não falavam. Nem consigo mesmas. Vogavam no interior de nuvens densamente acasteladas, onde sabiam ter um refúgio que as protegia dos contratempos, das maresias malditas, dos vultos prostrados, da miopia que se entretece no dorso da exemplar erudição atirada ao rosto dos que são tidos como beócios (pelos putativos eruditos). Era uma utopia. Um sonho por dentro do sonho que se debatia num canto da memória, sem um sono a condizer. 
Era um jogo que não tinha ganhador à partida.

5.6.19

In extremis (short stories #121)


Arcade Fire, “The Suburbs”, in https://www.youtube.com/watch?v=5Euj9f3gdyM
          Alguém assobia. Uma daquelas cançonetas irritantes, que se cola à memória como uma pessoa maçadora, com conversa que tem tanto de prolífica como de desinteressante, e que acerta no tempo e no lugar em que há coincidência. Alguém assobia, andando de trás para a frente na sala de espera. Não levanto o rosto. Não quero ver o rosto da pessoa que, por assobiar tão irritante cançoneta, deve quadrar a sua personalidade com aquele adjetivo. Posso estar errado. Uma cançoneta sibilada não diz nada sobre um estranho. Ilidem-se raras vezes as conclusões precipitadas que medram nos frágeis sinais enviados. São os preconceitos a fazer dano no julgamento. Não é que seja importante tecer a pauta do julgamento. Os outros não interessam. Até que passem a interessar, o que acontece numa interação, ou quando o outro passa a ser pessoa constante. O estranho continua a assobiar a mesma cançoneta, como se ela não tivesse fim, ou como se estivesse a ser repetida à exaustão e o estranho apenas conhecesse esta cançoneta. O meu rosto continua fixo num ponto imaginário que gravita no chão, para distrair o pensamento com pensamentos outros que desviem a atenção da cançoneta. A certa altura, no intervalo (breve, contudo) entre a última assobiadela e a que se lhe viria a suceder, sou eu próprio que dou comigo refém do contágio da cançoneta. Apetece-me saltar do lugar e encher o estranho com a violência que está à boca do vulcão que sou, pronto a entrar em erupção. Reprimo a ira. O estranho não tem culpa que eu considere a cançoneta tão irritante ao ponto de quase me levar à descompostura. Levanto-me e saio da sala de espera – assim como assim, já aguardo vez há quase uma hora, não será a ausência de uns minutos que fará perder o lugar. O olhar cruza-se fugazmente com o rosto do estranho que voltou a ciciar a cançoneta. Um rosto comum, uma pessoa comum, sem traços distintivos. Ao passar pelo homem já sexagenário, não consigo reprimir um trejeito de respiração denotativa de alguma ira. Inutilmente. O homem não saberá do meu estado iracundo e não terá interpretado o trejeito em harmonia com o meu desconforto. Ando para trás e para a frente, no átrio contíguo à sala de espera. Regresso. Mesmo a tempo. Já chamavam pelo meu número (sim, somos números e não nomes, neste lugar) pela terceira vez. A funcionária, com a sobranceria de quem se comporta como se ela fosse a utente, advertiu-me, em tom maternal: “foi a última vez que chamei pelo seu número. Esteve quase a perder a vez. Veja lá a sorte que teve!

4.6.19

Sempre


Interpol, “The Heinrich Maneuver”, in https://www.youtube.com/watch?v=U8XlOI0JZm0
Tenho medo do chão corroído, de meter os pés à confiança pela ponte fora e a meio as tábuas estilhaçarem sem pré-aviso. Tenho medo de precipícios e da lua cheia, apesar de saber que não há causalidade entre ambos. Tenho medo de comida fora de prazo e de intempestivas gastroenterites. Tenho medo de a manhã não chegar e ficar refém de uma noite tumultuosa e perene. Tenho medo de ficar amarrado a uma pétrea teia de aranha, à mercê de um vulto implacável. Tenho medo do terrorismo contra a gramática e a sintaxe.
Enquanto confessava as fragilidades, pensava na palavra “sempre”. “Estamos todos a dizê-la a toda a hora. Estamos sempre a dizer “sempre” como a antítese do “nunca” que também se oferece à boca com uma frequência que ultrapassa o recomendável.” E que importância tem o sempre – e o nunca? Talvez fossem apenas desmedidas, sem importância. Vocábulos que servem de recurso estilístico, a porta aberta para o exagero de uma ideia, como se a ideia precisasse de uma impostura para que se lhe dê a atenção que o tutor da ideia julga que ela é credora. 
Não me importuna a definitividade do sempre. Sobrepõe-se ao sempre a sua efemeridade. Um sempre é sempre até ser desmentido por um acontecimento que lhe dissolve a definitividade. Não há grande mal em povoar frases com “sempre”. A efemeridade de tudo cuida de recusar o sempre como imorredoiro. O sempre é um sempre até ser hipotecado por uma circunstância inspetiva que o desautoriza. O arrependimento tem esta serventia: cuida de aplacar o sempre que se arvora em intemporal, sendo seu cuidador na hora em que é esconjurado.
O sempre é uma força de expressão que perde toda a força quando se desliga da expressão. Só quem se ilude com a definitividade das coisas é que atribui importância ao sempre. Não são as juras que o abonam. Não são as orações que convocam as divindades que o precatam. Os atos, as palavras empenhadas na sua funda franqueza, a confiança em que as fragilidades não são sinal de decaimento, os gestos que penhoram um significado que ultrapassa as prolixas palavras, é que cuidam de entronizar um momento na sua paradoxal efémera intemporalidade. Porque esses instantes são capturados e metidos dentro de uma moldura que delimita a memória. Enquanto a memória for penhor da identidade, esses instantes têm o aval da intemporalidade. Esgotaram-se no tempo que foi sua pertença, mas perduram na memória desmaterializada. 
É quando o sempre faz sentido. Não é o sempre virado para o futuro. É o sempre que perpetua o passado na orla granítica da memória. Como caução do futuro que está por vir.

3.6.19

O recheio do bolo, apenas o recheio do bolo (short stories #120)


Thom Yorke, “Unmade” (Live from Electric Lady Studios), in https://www.youtube.com/watch?v=TxHgmAFkNyI
          Corta a eito. Sem medo dos rochedos que se precipitam no vazio, pois as fráguas prestam-se para miradouros – e é nos miradouros que se rejeitam as névoas inconsequentes. Se ao menos os braços não estivessem murchos; as pálpebras não se intimidassem com o sol a pino, neste Verão a destempo: podias congraçar a caligrafia aprumada em distintas folhas de papel, acreditando que é a condição suficiente para a boa literatura. Talvez não soubesses que estavas sitiado numa profunda ilusão. A miragem do encantamento pelo belo esconde as dores mais profundas em que se consome a complexidade. A ilusão é parte deste divórcio. Nela medram exércitos numerosos que não intuem que são a ilusão de si mesmos. Ao menos, compõem. Expõem ideias, numa articulação talvez duvidosa, ou pelo menos ininteligível aos outros. Não capitulas. A inteligibilidade é sempre uma armadilha povoada pela subjetividade. Tanto chega para arrotear um roteiro diferente, um que seja sopesado pelas mãos operárias do seu próprio autor. Pode ser que não mereças crédito. Não importa. Cada um de nós é o seu universo privativo – e ele não é tão pequeno como às vezes os fiéis depositários da vida em coletividade pretendem. Por isso, arrisca as ideias improváveis. Arrisca, até, o obnóxio. A ácida condição metida à prova das próprias palavras que se desprendem no etéreo pensamento e se imortalizam em palavras escritas, com residência fixa numa página de papel. Até que, por ato volitivo, decidas voltar atrás e destruir o que julgavas ser uma manifestação de eventual perenidade. Pois às vezes, o bolo é apenas uma imagem que se oferece ao olhar guloso. Dissolve-se por ação do olhar guloso. Mas o bolo esconde um recheio e é do recheio que devem tratar as ponderações que gravitam no aceso olhar. Não cuides do bolo na sua totalidade. Contenta-te com o recheio, que contém a essência a que se resume a altiva, mas ao mesmo tempo humilde, condição tua.