19.9.19

O guarda-redes de hóquei em patins que tinha uma interminável confiança na bondade dos Homens


Joan as Police Woman, “The Magic”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZPqVig-ggMw
“Todos deviam pôr os olhos no guarda-redes de hóquei em patins”, advertia, sem querer passar por tutor da moralidade ou impositor de um imperativo categórico que todos tivessem de cumprir.
(Porventura, o “todos” na frase podia ser considerado excessivo, se as suas intenções fossem treslidas. Se preciso fosse, ele esclarecia que “todos” não convoca uma interpretação literal.)
O guarda-redes de hóquei em patins tinha um depósito sem fundo na espécie humana. Era como se fosse o banco central da humanidade, com conta aberta, e a descoberto, sem limite de fundos, a favor da bondade intrínseca dos Homens. Em cada episódio que soava a soez desvio de uma alma humana, o guarda-redes de hóquei em patins congeminava uma teoria justificava do comportamento desviante. Ele teorizava, partindo deste princípio: se o comportamento era desviante, algo de exterior ao indivíduo estava na origem do desvio. A pessoa, sozinha, nunca era culpada de nada que a retirasse do plácito da bondade.
Houve um caso em que um homem foi acusado de vários assassínios. Em julgamento, não se arrependeu. Confessou tudo e, provocando os costumes, anunciou que se o tempo voltasse atrás faria tudo igual. O guarda-redes de hóquei em patins investigou. Chegou ao seu conhecimento um punhado de circunstâncias (que não quis revelar, para não violar a lei geral de proteção de dados) que era o lastro para o comportamento desviante. No final, revelou que o criminoso foi vítima das circunstâncias que o sitiaram. Fosse o guarda-redes de hóquei em patins o juiz e a absolvição teria sido consumada.
Noutro caso, um casal (homem e sua amante) urdiram uma armadilha para retirar do mundo dos vivos a consorte da segunda. A sociedade insurgiu-se, censurando o estratagema e punindo o homicídio em dobro – pelo homicídio em si e com a agravante de a trama ter sido montada por dentro do adultério; e a sociedade dos bons costumes não tolera o adultério, sobretudo quando é cometido pelos outros (essa deletéria reticência). O guarda-redes de hóquei em patins saiu em defesa do casal ostracizado. Exortou os concidadãos a despojarem-se do preconceito e a sublimarem o amor que levou o par a extravasar dos parâmetros convencionados. Fosse o guarda-redes de hóquei em patins o juiz e a absolvição teria sido consumada.
Depois, o guarda-redes de hóquei em patins arranjou explicações para um político que tinha sido apanhado em contumaz mentira. Quando já o político tinha caído em desgraça, arrastando o seu cadáver (político), o guarda-redes de hóquei em patins, que nunca votou neste político, explicou, uma por uma, as razões da mitomania. As mentiras estavam perdoadas. Fosse o político a votos outra vez, teria o voto do guarda-redes de hóquei em patins.
“Vejo sempre o guarda-redes de hóquei em patins com um sorriso no rosto. Sempre. É o mínimo denominador comum – a pior das hipóteses. Vê sempre o lado cheio do copo semivazio. Não aceita a maldade dos outros. Prefere encontrar os rudimentos da bondade. Não se cansa de defender que a bondade é intrínseca. Já o ouvi dizer: ‘se o Homem tivesse sido criado para a maldade, não tinha sido dotado de razão. Não se distinguia dos outros animais’. E assim segue pelos dias fora, amanhecendo em rima com o sol radioso.” E depois percebeu que o guarda-redes de hóquei em patins tem esta inata condescendência por causa da função: “assim como assim, o guarda-redes de hóquei em patins está habituado a ser a muralha que impede os golos do adversário. E dá o peito às bolas, sem tergiversar.”

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