24.9.19

“Lavo as mãos todos os dias”


Jens Lekman, “Become Someone Else’s”, in https://www.youtube.com/watch?v=yoWHNDgGtbg
“Como são duras as feridas enquistadas nas mãos”, lamentava-se, enquanto percorria as imagens mentais das acusações que sobre ele pendiam. Tinha a certeza que não havia, não podia haver, piedade na batalha em que se metera. Os adversários, como ele, queriam vencer o pleito. Para muitos, o poder é um anátema, e isso talvez ofereça uma teoria geral para a demissão da cidadania. Não importavam, essas elucubrações. Haveria, por uma vez, de não se entreter com as reticências da teoria e olhar de frente para as coisas pragmáticas da vida, para as demandas que tinham alvorada com o seu acordar e nem acabavam por se deitar. 
Ele queria experimentar o poder. Sabia do preço que tinha de pagar. O que mais doía eram as acusações em que não se revia: mentiroso, desonesto, oportunista, arrivista, corrupto. Esta era a pior, a que tocava na medula. Com isto, não admitia que as outras acusações tivessem um fundo, mas acontece que em certos aspetos da vida tudo obedece a uma questão de grau. “Assim como assim” – perguntava a si mesmo, com a necessidade de se atribuir algum crédito na eventualidade de um deslize – “quem nunca mentiu, quem nunca teve ao menos um decaimento na desonestidade, quem nunca tirou partido de uma oportunidade em proveito próprio, quem não ambiciona subir na escadaria do reconhecimento social?” Admitia: que já mentira, já fora (só um bocado) desonesto, já fora credor de oportunidades que soube procurar, e que não desdenhava o estrelato.
O que não aceitava, era o labéu de corrupção. Ficava fora de si. Uma vez, um adversário disse-o na televisão, com todas as palavras, à sua frente, arrastando-o para a lama da corrupção. Perdeu as estribeiras. Foi a única vez que aconteceu em público. E uma só vez chegou para destruir a sua reputação fleumática, da serenidade com que se dirigia ao público, como olimpicamente fazia de conta quando os adversários usavam ardis para o apanharem em falso. 
Daquela vez, toda a gente ficou atónita. Com a reação desabrida e com as palavras que deixou escapar em defesa da sua honra: “Corrupto, eu? Ora repita, repita!”, enquanto esbracejava e os olhos pareciam querer sair do lugar. E como o adversário estava a deliciar-se com o prato servido, correspondeu à demanda e repetiu: 
Queira vossa excelência saber, e para que conste, que é um corrupto da pior igualha. Tem as mãos imensamente sujas. 
Sem demora, retorquiu, para gáudio dos adversários e da boa disposição, em geral: 
Pois saiba vossa excelência que não tem fundamento a imprecação que me dirige, pois se todos os dias trago, e bem, lavadas as mãos minhas.

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