26.9.19

Povoação (short stories #161)


The Smashing Pumpkins, “Mayonaise”, in https://www.youtube.com/watch?v=MElfYleGIVU
          Desaprendo os alicerces gastos que foram tirocínio excessivo. Se o entardecer me diz algo, procuro emoldurar as palavras em passeios alindados pelas árvores floridas fora do tempo, procuro guardá-las num recanto da memória. Passo as mãos pelas paredes onde estão embebidas páginas e páginas da História. Talvez sinta melhor os vestígios da História, para dela ter melhor entendimento. Olho demoradamente para as mãos. As linhas tracejadas são um mapa, mas não consta que a cartografia das mãos tenha mudado por ação das paredes embebidas em História. Dizem-me que os olhos revelados traduzem as palavras indecifráveis, um caleidoscópio que se revela pela manhã. Dizem-me: que essa é uma linguagem universal, não precisa de gramática nem de tradutores. É possível que a linguagem dos olhos seja essa quimera. Mas as pessoas parecem fugir dos olhares. Furtivos, os olhares reproduzem um vazio, ou uma imensidão que se restringe a quem tutela esse olhar. É como nas povoações. Vemos o casario do lado de fora, como se o casario fosse os olhos de um todo. Mas é o casario que nos observa, porque os nossos olhos de observadores esbarram nas paredes que escondem o pano de fundo, as vidas que se vivem dentro das casas. Não é que seja dever esquadrinhas as vidas alheias. Contentamo-nos com a superficialidade das paredes das casas, o autêntico bilhete postal da povoação que demandamos. Os passeantes arpoam o seu anonimato, recíproco, equânime. A povoação é feita de habitantes, mas quase todos se desconhecem. É o sortilégio que precisamos. Consagrar a povoação e desaproveitar os soezes convites à autópsia das vidas alheias, seguida de juízo a preceito. O casario amontoado verifica a estética. Quando chegamos à povoação, aprendemos o casario e não sabemos das vidas dos moradores. Quando deixamos a povoação, saímos mais ricos pela estética do casario passada a pente fino. E sabemos que há um crescimento interior na cartografia dos sentidos que recebe a indulgência dos lugares visitados. Nem sempre as vidas das pessoas colhem a riqueza que interessa, se disso depender sondar os recantos dessas vidas. 

Sem comentários: