Portishead, “Glory Box” (live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=SVX2adpyInM
(Antecipação da conferência com o mesmo título na Casa da Música, em 14 de setembro de 2019)
Como posso fazer uma incursão no assunto sem me acusarem de misoginia? Como posso explorar o tema sem me acusarem de conservadorismo?
(Que se há coisa que não sou é misógino e conservador – e nem aceito que me digam, com um paternalismo indulgente, que sou, mas não dou conta de o ser, que não reconheço legitimidade a julgamentos que sentenciam de fora o que sinto por dentro de mim.)
Como posso elaborar sobre a interrogação sem cair nos excessos marialvas que abjuram o feminismo de taberna, nem incorrer no discurso moderno e bem-pensante da “filosofia de género” contaminada por generalidades e pensamento intelectualmente frívolo?
(Que ele há um terreno imenso entre os dois campos e, todavia, os que apascentam em ambos campos recusam a admitir a sua existência.)
Como posso não ser treslido se argumentar que esta lábia binária é reducionista, que atenta contra os próprios pressupostos de algum pensamento de vanguarda no contexto da “filosofia de género”, ao teorizar sobre formas alternativas de identificação sexual que não se reduzem aos arquétipos da “mulher” e do “homem”?
Como posso interrogar as construções conspirativas que endossam para a geração presente a fatura das atrocidades cometidas pelas gerações antepassadas, para provar que não é razoável imputar responsabilidades aos “homens” de hoje (generalização limitada, concedo) pelas inaceitáveis desigualdades de antanho?
Como posso encomendar aos marialvas, em suas praças de touros acantonados, o silêncio antes de arrotarem dislates que desprezam as mulheres, mas que os apoucam mais a eles?
Como pode alguém tirar um oráculo da algibeira para responder à pergunta que é a casa da partida (deste texto e do debate na Casa da Música)?
Como posso denunciar o maquiavelismo que se insinua na inversão de papeis? Como posso adivinhar que “a mulher” pode ultrapassar “o homem”, sendo essa a condição imprescindível para um futuro habitável?
Como posso garantir que “a mulher” corporiza os valores benévolos, catalisadores, heurísticos, que são recusados “ao homem” enquanto patriarca da espécie?
Como posso admitir a mulher é intrinsecamente propensa à bondade mercê da sua condição de mãe (existente ou potencial), se essa argumentação naturalista é a que serve de ponto de partida para recusar as diferenças biológicas entre mulheres e homens como esteio de uma desigualdade caucionada pela natureza?
Como posso ser convencido que “as mulheres” são diametralmente opostas “aos homens”, se este discurso incorre num vício ontológico que nega a validade da retórica que denuncia a desigualdade entre homens e mulheres, estribando-se num pressuposto (a desigualdade) que é o objeto que essa retórica pretende combater?
Como posso antecipar que a transfiguração de papeis, com a “matriarcalização” da sociedade, devolve a pureza sanitária à espécie, sendo condição de partida para o restabelecimento do otimismo antropológico?
Como posso ser levado a crer que a substituição do “Homem” pela “Mulher”, como sinónimo da humanidade, é o perfume em falta para erradicar os tremendos erros congénitos que são o lastro da história da humanidade?
Como posso perfilhar uma grelha de leitura que diagnostica “a mulher” nos antípodas “do homem”, se somos todos feitos da mesma massa, de sangue e carne e ossos e emoções?
Como posso não ser assaltados por pesadelos que evocam a aranha viúva-negra, que mata o macho como corolário da cópula, quando pela tela mental passam imagens de feministas exacerbadas (sem ser, outra vez, acusado de misoginia)?
Concluo que o melhor critério é deixar todas as interrogações sem resposta (como se fosse um coito interrompido).
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