3.9.19

Cabeça sem coroa (short stories #155)


The Divine Comedy, “To the Rescue”, in https://www.youtube.com/watch?v=FyH6bnt56mU
          Já não havia império. Terras inférteis ocupavam o pensamento. Tudo o que sobrava era um cais remoto, o paradeiro às vezes indeterminado, por onde caminhava em exilio dos sobressaltos. Dantes – sussurrava num frémito – tinha coroa e não a soube usar. Talvez não estivesse preparado para os vulgares esteios do mundo e inverosímil fosse a representação que dele fazia. Acreditava numa ilusão e medrou por dentro dela. Era como se o pensamento tivesse via verde e se desprendesse do corpo, e este é que estava em sintonia com o que se passava lá fora. A coroa que usurpou sem protesto não fora generosa. Fora uma armadilha. Tudo o que fundou por dentro de si era um refúgio contra o sentido improvável da existência. Não queria ser cúmplice dessa contrariada malha onde as pessoas existiam. Custou-lhe entender os elevados custos de investir contra a maré dominante. Ainda assim, não tergiversou. Considerava que uma elevada estima de si mesmo e a ideia de que era reta a sua coluna vertebral era o que mais importava. Por maiores que fossem os danos inerentes à pertença – e aqui não estava em causa o sentido político da palavra, apenas o antropológico. As densas teias que se compunham eram o emaranhado que o aprisionava. Não conseguiu derrotar esse emaranhado. Mas insistia na sua demanda, como se fosse uma peregrinação. Apostava que a paga era a serenidade interior como juro da equação. Não tinha a certeza; era apenas uma leve desconfiança que se agitava no equinócio rude do mundo. Preferia medrar na ilusão da coroa repousando em sua cabeça, imperador do seu império exclusivo, de que era suserano e único súbdito ao mesmo tempo. Estava apostado em lidar com o ónus que se abatia sobre o pensamento, numa constelação de interrogações incessantes. Aos outros, a cabeça sem coroa, súbditos acríticos de uma vetusta ramificação de coisas destituídas de sentido. Ao menos, não tinha vergonha da coroa que só mostrava a si mesmo, no sereno ciciar do sono.

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