29.8.25

A miopia intencional (short stories #505)

New Order, “Leave Me Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=THdLMFzJjG0

          O mundo está avariado. Faltam mecânicos para o reparar. Apuram-se os valores, numa ética refinada que preenche páginas e páginas de compêndios – os manuais de instruções para os que aspiram a uma certa pureza no trato com os outros. E, no entanto, os gestos quotidianos e as palavras sucessivas afastam-se dos cânones. Nunca foi tão paradoxal situarmo-nos no mundo. Há quem sugira diagnosticar os males, convocando as capacidades cognitivas para encontrar a reparação habilitada. Se os esforços malograrem, não se pode acusar quem tentou saber da solução que erradicasse os males inventariados. Às vezes, é por um acaso que as soluções erram. Outras vezes, a boa fé é insuficiente para uma prescrição acertada e os problemas continuam por resolver. Ou então, reconhecida a gigantesca dimensão das doenças que acometem o mundo, recorre-se ao fingimento. Faz-se de conta que os problemas que contaminam o mundo não são vistos. Ou, num procedimento alternativo, finge-se uma miopia que não existe. Essa miopia impede a revelação das fraquezas do mundo. Não se diga que este método é uma capitulação. Perante a escala dos males que desaconselham o mundo e a incapacidade de cada pessoa contribuir para uma correção capaz de alguns desses males, o método viável é olhar para o lado ou, não sendo esse o caso, fingir uma miopia pericial. E recusar os óculos a preceito, teimando na miopia que previne o olhar de ser desafiado pelas sucessivas levas de males que açoutam o mundo. Através da miopia, estabelece-se um mundo paralelo – um sonho, ou um pesadelo, que a possibilidade não pode ser invalidada, que delimita o espaço congruente com o fingimento basilar. Esta miopia não é uma afeção do olhar; é uma cortina que intercede a favor da lucidez possível, afastando dele as tergiversações que adiam a reparação do mundo. 

28.8.25

Carta aberta (short stories #504)

Explosions in the Sky, “Moving On”, in https://www.youtube.com/watch?v=9rI16AJ3Rik

(Incógnito)

            Participamos na vertigem dos elogios. Os dedos vagos avançam sobre o mapa como se fossem estrelas. Procuram a lua como refúgio. A sua gramática não é vendável. Dedicam um poema a quem gostariam de verter felicidade. Os dedos procuram a manhã às escuras. Como se os olhos precisassem de vendas para saber procurar lugares, sem ajuda. Alguém exclama que o tempo nunca se cansa. Eu digo que nos cansamos do tempo. Fugimos dele, mas não conseguimos. Somos as árvores condenadas a ostentar as folhas caducas quando o pessoal Outono lança âncora na nossa carne. Só para subir as ruas que dão acesso ao miradouro e daí apreciar demoradamente o ocaso. Até pode passar a noite inteira, que os olhos treinados saberão distinguir as várias cambiantes que se desfiliam do tempo tutor. Aparecem, em forma de vestígios, deslaçadas e impuras, traduzem a desorganização em que as vidas parecem campear. Alguém diz: isto está a precisar de ordenação; de uma mão certeira que conviva com um tempo que conjura contra nós. Mas se dizem que o tempo é irrefreável, que está embebido numa vontade que excede a nossa, como o domesticamos? Alguém sugere a construção de barragens que domestiquem o tempo; um plano hídrico pessoal, com as barragens construídas em lugares nunca ao acaso, só para meter o tempo na ordem e nos deixarem com uma sensação, enfim, de vazio. As empreitadas oníricas não são desta dimensão. Os dedos cansados defumam os sonhos inconfessáveis com pétalas de flores perfumadas. Esperam que voltem a sonhar fora dos deslimites para que tinham sido atirados pela ousadia dos loucos que conspiram. Para esta empreitada não são precisos embaixadores. Os dedos contam consigo e sabem ser os arquitetos dos mapas necessários. O amanhã serve-se na fria demanda dos que desacertam os oráculos. Pois é assim que o amanhã é, à prova de oráculos.



27.8.25

Onde está a tua criança interior? (short stories #503)

PJ Harvey, “All and Everyone”, in https://www.youtube.com/watch?v=FpHTeqlwTAM

          O chão cobre-se de purpurinas, confettis, bolas de sabão, perucas, disfarces vários e páginas de BD propositadamente arrancadas. É uma festa iniciática com um sentido paradoxal: o que se inicia é o fim da infância que compreende a adolescência e a passagem à idade adulta. Os corpos são diferentes, os interesses também, e tudo exige uma marca registada que seja o selo da transição. Os iniciados não se conseguem desprender da sua criança interior. E, há que reconhecê-lo sem barragens mentais, os que os iniciam a sair de uma idade pueril também ainda não esconjuraram as crianças que estão tatuadas nas suas vidas. Talvez a expressão esteja exagerada: o que se esconjura são os diversos males que se alojam sob as diferentes peles do tempo. Os mais adultos, até os que suam toda a responsabilidade institucional de quem admite a concurso os que se propõem a deixar de ser crianças, não conseguem deixar de lado a criança espiritual que vive neles. Só tem mal para os que menosprezam as condições do tempo e o admitem como um espartilho que os aprisiona. À infância a infância, à adolescência a adolescência, à idade adulta a idade adulta (com as diferentes mutações que corporizam as diferentes etapas da idade adulta). Como se fosse proibido resgatar fragmentos de outras etapas, sobretudo das que já foram vividas e que estão arquivadas em estantes herméticas. Os mais circunspectos, os que alardeiam a gravitas da responsabilidade como garantia de sua condição superior, devem ao erário pessoal a libertação da criança interior que continua a habitar o sangue. O exercício metódico que devíamos levar para férias era indagar onde se encontra a criança interior que, com mais ou menos visibilidade, continua tatuada na pele adulta de todos nós. Quando a descobrirmos, talvez sejamos docemente irresponsáveis. Talvez resgatemos uma idade dos sonhos que foi substituída pela dos pesadelos.

26.8.25

História das instituições (short stories #502)

Deftones, “Infinite Source”, in https://www.youtube.com/watch?v=U_uVVO7eGic

          Nas escolas ensinava-se: não é a História das pessoas que conta, é a História das instituições. Uma criança, talvez sobredotada, perguntou ao professor se as instituições não eram fabricadas por pessoas e, nessa medida, em que medida estava errada a lição das escolas que doutrinavam as crianças sobre as instituições como o cimento das pessoas. (Não terá sido com estas exatas palavras que o estudante se dirigiu ao professor, mas andou lá perto.) O professor, formatado para formatar os estudantes, engasgou-se e gaguejou, quase ao mesmo tempo, ao debitar o lugar-comum vertido no manual. Inseguro sobre a sua própria explicação, quis virar a página e avançar no plano da aula. O rapaz não estava satisfeito com a resposta e fê-lo notar de viva voz. O professor teve um princípio de suores frios e tentou arranjar uma metáfora para explicar como as pessoas não são nada sem terem instituições a ampará-las, saindo-se com este esboço: as pessoas precisam de cuidados de saúde e usam o serviço nacional de saúde e da segurança social; as pessoas precisam de cobrir riscos e contratam seguros; as pessoas envelhecem e precisam de garantir a sobrevivência financeira, recebendo pensões de reforma; as pessoas querem garantir direitos básicos, não económicos, lançando mão do sistema político que garante esses direitos. O rapaz insistiu: mas não foram pessoas que fabricaram todas essas instituições? Quando as instituições são modificadas, não é verdade que são pessoas que estão na origem dessas alterações? O professor ainda ficou mais lívido com a tenacidade do estudante. Não conseguiu melhor explicação do que responder que as pessoas fabricam e modificam as instituições, mas quando o fazem não atuam como indivíduos, personificam uma voz coletiva que é a cofragem das instituições. Quando o rapaz saiu da aula, não estava convencido. A História das instituições era um eufemismo para a História das pessoas protagonistas. Também percebeu que o futuro seria igual ao manual que serviu de teleponto mental para o professor. Para os estudantes, é mais cómodo debitar a doutrina dos manuais do que pensar pelas suas cabeças. 

25.8.25

Alma boa (short stories #501)

Hooverphonic, “Eden”, in https://www.youtube.com/watch?v=bWPOLL_Rr8U

          O rosto sorridente encontra o estuário do dia e cumprimenta-o. Pergunta pelo inventário desabitado: acredita que os dias começam de um nada e se amontoam nas várias camadas que os vão atravessando. A alma amanhece apta, saciada no refrigério que é sempre um começo. Uma alma assim surge aos olhos demais tingida por uma miríade de cores que a tornam apetecível. É uma daquelas almas que dão vontade de conhecer. Ela não se importa; isto é: não faz questão de se tornar popular aos olhos que com ela querem travar conhecimento. Prefere a sobriedade, sem deixar de ser uma alma boa. Prefere a generosidade sem ostentação, proibindo a publicidade à generosidade que não chega a ser lavrada num livro de memórias. A alma boa não se amedronta com o crepúsculo que fecha as janelas à luz preponderante. A luz deixa de ser preponderante, sob os auspícios do crepúsculo que tomou conta do seu lugar. A alma boa sabe sopesar as coisas nos seus devidos lugares. O crepúsculo toma o lugar que pertence à luz que continua a irradiar nos bastidores. A boca entroniza o Outono amadurecido enquanto a fala se congemina nas estrofes que acertam contas com o tempo proscrito. A alma não olha para trás. Sem negar provimento à matéria emoldurada, a alma é boa porque se atira de frente ao tempo que tem uma safra tangível. A ossatura que se oferece é uma paisagem extravagante que levita as almas para além dos domínios respetivos. Os viajantes são os escolhidos na taluda da bondade. São tantas as cores, os lugares, os aromas, os idiomas e as pessoas que num apanhado da mediana se consagram como almas que se elevam nas preferências da bondade. Da parte dos deuses, nota-se uma inveja indisfarçável: quando forem grandes, querem ser como as almas boas.

22.8.25

Post Scriptum (short stories #500)

Nirvana, “Heart-Shaped Box”, in https://www.youtube.com/watch?v=KAUMUphTq_s

          Só mais isto, ou aquilo, ou ainda talvez o que acabarei por me lembrar de dizer para que a conversa não tenha um remate prematuro. Um par de frases a mais: prefiro ter de dizer mais do que estava para ser dito do que me arrepender de ter escondido as palavras na austeridade do silêncio ou sob a tirania do esquecimento. Nem que seja sob a forma de um post scriptum, a adenda significativa. Não é como uma nota de rodapé, que deixa para plano secundário o que não deve ficar omitido, mas não tem privilégio de informação centrípeta. O post scriptum é o que ainda falta dizer depois de se pensar que estava tudo dito. É um ainda vamos a tempo de dizer isto mais. A alocução que pode fazer a diferença. Às vezes, o post scriptum deixa para memória futura as palavras que não podiam ficar omitidas, sem que elas façam muita diferença – são um acrescento que completa o que havia sido dito. Outras vezes, o post scriptum é gerido com perícia para se tornar o coração da mensagem. Diz-se quase tudo o que tem de ser dito. Intencionalmente, a melhor parte fica guardada para o final. O post scriptum transforma-se no ator principal da mensagem. É a conclusão do que tinha acabado de ser dito. Tanto pode ser a conclusão esperada como a revelação que ninguém estava à espera. O post scriptum é a revelação do que não podia ficar sitiado pelo silêncio ou pelo esquecimento. Se não fosse o post scriptum, o propósito das palavras precedentes ficava incompleto. Talvez o destinatário não o consiga pressentir antes da revelação do post scriptum. Quem fala é que tem o encargo de convocar o post scriptum. A ele cabe saber se há palavras que ainda esperam por vez, para não torturar o propósito da conversa. 

21.8.25

Unhas roídas (short stories #499)

Slowdive, “Hide Her Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=L35RECpGefM

          As unhas roídas, em vez de outra catástrofe qualquer. Pensava, enquanto discernia as borras que assentaram no fundo da chávena do café: antes roídas as unhas, um autêntico manifesto de antiestética, ou uma obra de arte da má educação, do que ser autor da sementeira de males maiores. Roer as unhas como um aviso de emergência atmosférica que põe as pessoas de atalaia para as perdas e danos que sobrevêm a uma tempestade. Os sobressaltos são aplacados através do metódico, e todavia caótico, nervoso roer de unhas. Um perito em roer as unhas clarifica a epistemologia da função: quanto mais próximo do sabugo, mais terapêutico é o roer de unhas. As beligerâncias ficam anestesiadas. As palavras que podiam ferir outras pessoas não chegam a ser desalfandegadas. Os suores frios não são debitados. As insónias são adiadas para núpcias piores. Em vez desses sismos interiores, as unhas oferecem-se como vítimas sacrificiais. Ficam curtas de mais, atrozmente feias, a bem da paz interior de quem não tem vergonha de exibir as roídas unhas em público. Se os estetas protestam contra a feiura das unhas roídas, mostrando, a seu favor, os maus pergaminhos da má educação de quem, em público ou em privado, rói as unhas; e se insinuarem a hipótese de tais viciados serem obrigados a usar luvas em público (como se fosse preciso condená-los à ostracização), contraponha-se que a estética e a boa educação devem ceder perante o bem maior da paz de espírito. As unhas roídas só são motivo de desorgulho para os impecáveis zeladores da moralidade pública. Podem ser exemplares a respeitar os cânones, podem ser faróis da boa educação; mas serão, muitas vezes, almas interiormente torturadas por reprimirem o hábito de roer as unhas. Às vezes, os médicos passam receitas que recomendam o ato de roer as unhas. 

20.8.25

Um misantropo começa por não gostar de si mesmo (short stories #498)

Deftones, “My Own Summer”, in https://www.youtube.com/watch?v=XOzs1FehYOA

          O espelho do misantropo é o seu pior inimigo. Pois o misantropo está na ponta contrária da corda segurada pelo narcisista. Se se disser que um misantropo o é por odiar os outros e muito de si gostar, não é um misantropo. É um farsante que disfarça a imagem sublime que de si tem com o rancor que os outros causam. Para ser um genuíno misantropo, o misantropo tem de começar por não gostar de si mesmo. Depreciando-se intencionalmente, fica livre para não gostar de estar no meio dos outros e deles não gostar. Essa é uma modalidade arrevesada de narcisismo: por o misantropo não gostar de si mesmo, ele tem autoridade para estender o diagnóstico aos demais. Não se protege dos outros como intrusão, defende-se de si mesmo num ato espontâneo de autodesvalorização. Sem querer saber se a análise colhe para além de uma hermenêutica essencial, não importa que o misantropo seja genuinamente o crítico mais feroz de si mesmo, ou que se socorra do estigma autoimposto apenas para ter uma couraça contra os outros. A análise deve começar pela outra extremidade: o misantropo está à vontade para não se sentir à vontade com os outros porque começa por não estar à vontade com o seu eu. Não há misantropia de outra estirpe. Os que se excitam com a imagem devolvida pelo espelho e depois espalham desprazer no trato com os outros não são misantropos. São oportunistas que procuram um pretexto para sublimar o seu eu: o eu que adoram confronta-se com os outros que estão a léguas desse esplendor. Essa misantropia é o eufemismo de um narcisismo mal disfarçado. Por isso, o misantropo não se assusta quando presta contas ao espelho. O espelho do misantropo é o seu pior amigo.



19.8.25

Também há americanos sem Coca-Cola (short stories #497)

The Cure, “Trust” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=iXNBF6yPkas

Beber Coca-Cola participa da identidade comum de um norte-americano (Alexandre Lefebvre, “Como Viver Como um Liberal”, Gradiva, 2025). Como não bebo Coca-Cola porque não aprecio o refrigerante, se tivesse a nacionalidade dos Estados Unidos a minha identidade seria amputada? Não se estranhe que uma característica tão comezinha (só o facto de a reconhecer como característica pode ser controverso) represente um fator de identidade nacional. Nela participa uma amálgama de fatores que retratam a cultura de um povo. A gastronomia (neste caso, uma bebida que até se emancipou dos cânones gastronómicos) é um ingrediente dessa identidade. Pode ser a baleia fermentada na Islândia, a tarte de rim na Inglaterra, a cobra em certos países africanos, toda uma sorte de gafanhotos e insetos em países asiáticos, um queijo sardo que fermenta em larvas, as tripas no Porto. Alguns casos são traços de idiossincrasia nacional, outros têm delimitação regional. As pessoas reúnem-se à volta da mesa, na família ou entre amigos, e comem e bebem o que for típico. Esse é um fator que cimenta os laços. E se um desses elementos estiver ausente (porque uma alergia impede de consumir esse alimento, ou apenas porque a pessoa não o consegue ingerir), a identidade fica prejudicada? Um norte-americano é menos norte-americano se não consumir Coca-Cola? Eu sou menos português – ou, vá lá, portuense – por não conseguir comer tripas à moda do Porto? A comida e a bebida pertencem ao património cultural de um lugar. Quem consome esses alimentos e essas bebidas soma fatores de identidade comum. Não se pode fazer uma operação de sinal inverso no caso contrário. Um norte-americano que não goste de beber Coca-Cola não se torna menos norte-americano. A identidade é o somatório de múltiplos fatores. Ainda bem que há norte-americanos que não gastam um dólar em Coca-Cola. E ainda bem que continuo a ser portuense, apesar de não gostar de tripas à moda do Porto.

18.8.25

A opinião em público é uma atividade de desgaste rápido

Royal Blood, “Roxane” (live at the Live Lounge), in https://www.youtube.com/watch?v=FZ1-Tcgcvm4

Quem opina fica à mercê das opiniões dos outros sobre essa opinião. Pode ser uma atividade de desgaste rápido, sobretudo se quem opina se incomodar com os comentários desagradáveis dos profissionais do comentário amador.

Não está em causa silenciar as caixas de comentários. Os jornais que as contemplam merecem aplauso: assim como assim, à possibilidade de escribas amadores serem acolhidos nas colunas de opinião dos jornais deve corresponder o escrutínio público dessa opinião. É o preço que os cronistas amadores pagam por terem a sua palavra levada à letra de forma: estão a jeito das reflexões feitas por quem os vier a ler.

Também não está em causa um crivo mais apertado para impedir comentários desagradáveis. Esse é outro preço a pagar pela exposição pública. Palavras mais contundentes, ou palavras mais controversas, ou apenas ideias treslidas (afinal, tresler também é um direito, não é só uma afeção), podem causar reações de acrimónia. Não se pode contrariar essas tentativas de enxovalho. Quem desliza para a contundência ou para a controvérsia tem de estar preparado para o desagrado que as suas palavras causam; deve ter poder de encaixe para ler palavras contundentes ou controversas sobre as palavras que escreveu. Deve, até, esperar um ataque pessoal, que as caixas de comentários estão colonizadas por personagens que as aproveitam para destilar o fel mal destilado noutras instâncias.

A capacidade de encaixe dos cronistas amadores pode variar consoante os traços de personalidade. Há quem dedique total indiferença ao azedume que lhe é destinado; há quem fique abespinhado pelas palavras desagradáveis que o(a) põem em causa; há quem entre em diálogo com os seus comentadores (a melhor maneira de perder tempo inconsequentemente); há quem se dedique a colecionar preciosidades recolhidas de excertos de comentários que são reveladores de quem os escreve. Não acredito que um cronista amador seja indiferente aos comentários que refletem sobre as suas ideias. Nem que seja pela curiosidade felina de espreitar o que está escrito sobre o que escreveu, o cronista amador lá vai espiar a caixa de comentários.

O que retenho é a perícia dos profissionais do comentário amador em treslerem as palavras que comentam. As pessoas estão muito tribalizadas, acantonando-se numa defesa intransigente das suas posições e das suas cosmovisões. Têm pouca, ou nenhuma, tolerância para serem confrontadas com ideias diferentes das suas. Cristalizam-se em seus redutos e daí à polarização vai um pequeno passo. E mesmo quando não é o caso, transformam, através da sua tresleitura caldeada por uma reação destemperada, palavras num sentido que elas não têm, mas que lhes agrada, nem que seja para, através do ataque às palavras de outrem, defenderem as posições de que partem (sem que elas estivessem em causa pelo texto que dá origem ao comentário).

Estes mal-entendidos saldam-se num clima tempestuoso que habita (muitos) profissionais do comentário amador. E torna o espaço público um lugar cuja frequência não se recomenda.

15.8.25

Corpo inteiro (short stories #496)

The Murder Capital, “Love of Country” (live in Sofia), in https://www.youtube.com/watch?v=0tHqHNU7aBU  

          O corpo nunca é parcial. Inteiro, desafia as tempestades que o podem derrubar. Sobe ao palco quando muitos pecam pelo silêncio. O corpo é inteiro quando a vontade não se dissipa contra o domínio do medo. Na sua inteireza, o corpo avança pelo tempo fora sem se intimidar com as sombras medonhas que colonizam a claridade. De corpo inteiro, sou embaixador de mim mesmo, mecenas do hedonismo, procurador das tormentas que adestram o corpo, entregando-o com demorado prazo de validade ao suplício da decadência. O corpo inteiro abre os braços e não recusa sobressaltos. Atira-se de cabeça, sem temer que os sobressaltos estejam apetrechados de punhais afiados contra o corpo que contra eles investe. O corpo inteiro dispensa a fala. Tutela um silêncio que contraria as palavras que, de tanto ditas, se gastam na sua usura. Há pessoas que falam da linguagem corporal, outras mostram as credenciais e dizem-se peritas na especialidade. O que interessa é falar-se em linguagem corporal (e não a ciência – se é que ela existe – da linguagem corporal). Só podemos falar com o corpo se ele for uma entrega sem remissões. O corpo inteiro não procura absolvição. Ignora os dedos apontados pelos sacerdotes da moral que nasceram envergonhados com o próprio corpo. Procura falar com o discreto gesticular como se fossem estrofes desarmadilhadas. Ou pode atuar através de metáforas. Um corpo inteiro é dedicado. A dedicação exige muito. Assim como acontece com o corpo, a dedicação não pode ficar pela metade. Ou deixa de ser dedicação. O corpo que finge ser inteiro arruína a inteireza dos corpos que não se escondem em evasivas. A propagação da mentira sistemática é um véu plúmbeo que se abate sobre o corpo. É difícil apurar as suas intenções. Pior do que um corpo intencionalmente pela metade, é um corpo que finge ser inteiro.

14.8.25

Puzzle

Sigur Rós, “Andvari” (live at Reykjavik), in https://www.youtube.com/watch?v=4FDULxUeMpQ

Sem escala nem métrica, o santuário do medo recebe as vozes que o materializam. Sobem pelas paredes os murmúrios que transgridem a angústia. De cada vez que anoitece, a boca emudece por dentro, tomada por vultos avulsos que conspiram em colusão. A chama dos pesadelos desadormece a noite, transfigurada num sobressalto contínuo. 

As relíquias guardadas supõem um passado próspero. A infância guardada na concha da mão, de onde saem fragmentos luminosos que avivam o dia, quando o dia amanhece entristecido pela capitulação ao tempo limítrofe. Apetece desafiar a conceção do tempo. Esvaziá-lo por dentro até ficar um quarto vazio à espera de ser habitado. A escolha não pode ser ao acaso. O critério meticuloso é a janela por onde respira a ambição. 

Às vezes, o dia segue pelo tempo fora como se fosse um trapezista a percorrer o fino fio sobre o precipício. A boca mantém o silêncio para não se despenhar. As mãos agarram-se à efemeridade como se ousassem a sua metamorfose na dilação do tempo. Sem ser a hibernação de quem empurra o tempo com a barriga, omitindo o choque frontal com a realidade, como se fosse possível travá-la com a firmeza das mãos. 

A matéria dos sonhos é frágil, um candelabro de cristal que não é à prova de sismos. E todos os dias há sismos que ficam guardados para memória futura, mostrando uma linha acidentada que tremeluz com cada indisposição que desassossega o magma. Como se fosse um mapa de cicatrizes. Ninguém está a coberto de uma fratura exposta quando as entranhas se sublevam, bramindo as dores ao acaso de quem se sente acossado pela indiligência dos negligentes. Deviam ensinar desde os bancos da escola o que é a negligência e como a devemos evitar. 

Se fôssemos como as aves migratórias, teríamos um propósito. Estávamos, é certo, empenhados numa rotina que se encorpa todos os anos. Mas já somos seres viciados em hábitos; que mal faria termos as rotinas das aves migratórias? Seríamos o nosso próprio cata-vento. Sem bússolas, que são instrumentos alheios, intrusos. E assim iríamos atrás da inteligência, um processo selecionado em nosso abono, combatendo a tendência natural de sermos presas da nossa própria caça. 

Então, seria possível abraçarmos os sonhos com as mãos desimpedidas. E os sonhos seriam os implausíveis lugares a que nos entregaríamos, desapossando a usura do tempo e dos outros.

13.8.25

O Tribunal Constitucional é o patinho feio do regime (mas não devia sê-lo)

Royal Blood, “Little Monster” (live at Later...With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=PHBJpCjq50E

Aconteceu outra vez: o Tribunal Constitucional (TC) entrou em cena, a pedido do presidente da república, para apreciar a constitucionalidade da lei dos estrangeiros. Como de outras vezes em que estavam em causa assuntos controversos com potencial de dividir a sociedade, o TC agradou a gregos, mas não agradou aos troianos. 

Como nas outras vezes, os que ficaram contentes com o acórdão aplaudiram-no e relembram que o TC é o zeloso guarda-costas da Constituição; os que viram a sua posição invalidada denunciaram a parcialidade do Tribunal. O auge do ataque é acusar o TC de ser um órgão político. Essa acusação materializa a parcialidade do TC. Qualquer tribunal que seja acusado de parcialidade vê a sua autoridade questionada, por não corresponder à imagem da justiça associada à figura de Themis. Este libelo é produto da ira que se abate sobre o TC. O tribunal passa a ser um ator político por entrar no tabuleiro da política, já não estando limitado pelas baias das funções jurisdicionais. Os críticos (os de hoje, os de ontem e os de amanhã) acentuam a adulteração do TC e duvidam da sua reputação. Este comportamento motiva quatro observações. 

Primeiro, o TC não é um tribunal qualquer. É o tribunal acima de todos os tribunais e garante a constitucionalidade das leis. Dá amparo à legitimidade política dos governos. Os que, destilando fel por um acórdão do TC que lhes é desfavorável, desprezam o TC com a acusação de ser um órgão político estão contaminados pelo estado febril da disputa político-partidária, desconhecendo o perfil do TC. É que a Constituição é uma lei fortemente politizada, ou não contivesse os alicerces do sistema político de um país. 

Segundo, quem tem falta de fair play democrático e acusa o TC de se ter tornado um órgão político está a profanar a dignidade (que devia estar) associada a este tribunal. Ignoram (ou fingem ignorar) que a verificação da constitucionalidade é uma tarefa interpretativa. As normas constitucionais, que servem de padrão para aferir se uma determinada lei é constitucional, não são impermeáveis à subjetividade interpretativa. É uma dupla subjetividade: da lei escrutinada e das normas da Constituição que servem de guia para apurar se aquela lei não entrou em rota de colisão com a Constituição. Partir daqui para considerações sobre a intencionalidade política dos juízes do TC é abrir uma caixa de Pandora que, nestes tempos de sequestro da democracia por movimentos populistas de diferentes extrações, contribui para a fragilização das instituições que devem garantir os alicerces jurídico-políticos da democracia.

Terceiro, esta animosidade contra o TC terá origem no processo de escolha dos juízes, que peca por excesso de politização (melhor: de partidarização). Quando se apura o sentido de voto dos juízes, a imprensa e os políticos atiram-se ao inventário do “quem foi escolhido por quem”. Os que entraram pelo contingente do PS são colados às opções políticas deste partido e os que foram designados pelo PSD votam a favor de interpretações consentâneas com a estratégia deste partido. Esta é uma visão redutora. Passa por cima da imparcialidade que, por definição, entronca na atividade de um juiz, qualquer que seja o tribunal. O TC, mais politizado do que outros tribunais, não escapa a este axioma. Estes momentos de controvérsia que arrastam os juízes para a parcialidade exigem repensar o processo de escolha, não o tornando tão permeável à luta político-partidária. Para que os juízes não sejam vistos, erradamente, como o juiz X escolhido pelo partido Y e, portanto, fiéis aos interesses do partido que o escolheu para o TC.

Quarto, é pueril (para dizer o mínimo) que quem não se revê na posição adotada pelo TC caia tão depressa numa reação primária, tão ao jeito do tribalismo do futebol. Um dos males que afeta a democracia é a permeabilidade da política ao futebol, importando certos tiques que contribuem para a sua corrupção. Afirmar, como fez um deputado do CDS, que o TC ignorou a mudança de paisagem político-partidária após as eleições legislativas, faz pensar se terá bolçado esta boutade após o almoço e qual seria o grau de alcoolémia – de outro modo, era chamá-lo à pedra e convidá-lo a renunciar ao cargo, por impreparação para ser representante dos eleitores por manifesto desconhecimento das regras do sistema político. Parece aquelas reações tribais típicas do universo que gravita à volta do futebol: o árbitro é aplaudido quando a equipa ganha; quando a equipa perde, as culpas recaem em grosso sobre o árbitro, por detetarem intencionalidade nas decisões que inclinaram o campo a favor do adversário. 

O TC é o patinho feito. A reputação do TC fica degradada por essas campanhas com muito acolhimento mediático, mas que passam ao lado do essencial. Era só indagar quantos dos críticos de acórdãos do TC, situados em diferentes trincheiras, leram esses acórdãos para depois sustentarem as críticas ou o aplauso? Pelo caminho, os juízes, que deixam de valer pelo nome e pela fundamentação da sua interpretação, apenas contam pelo contingente partidário pelo qual entraram no Palácio Ratton. 

Os radicais e populistas de diversas extrações agradecem a deferência. Nem precisam de combater a democracia; há quem o faça por eles por dentro do sistema político.

12.8.25

A turbulência e as pessoas assopram bolas de sabão

In Expresso, 09.08.25, p. 31.

Gosto dos gestos que desassombram. Gosto ainda mais quando os tempos são atravessados por dificuldades que hipotecam a felicidade das pessoas; quando as ruas se enxameiam de protestos, mesmo quando não os subscrevo (desde que os protestos não sejam contaminados pelos da baderna do costume, que, indignos e egoístas, não percebem, ou fingem não perceber, que desviam as atenções das reivindicações legítimas que saem às ruas). 

As ruas são o início e o fim de um processo de protesto contra decisões malévolas. É mais fácil começar o processo com a tomada das ruas, para que elas sejam as porta-vozes dos protestos. Os mandantes não costumam ser indiferentes às vozes que bramam nas ruas. Muitas vezes, as ruas são a última instância dos que levam o protesto à boca. Fico encantado quando a imaginação faz ferver a manifestação, pois ela contém uma dose de originalidade que se aconselha aos criativos. Porque inclui gestos imprevistos que desafiam a força bruta da autoridade que se exibe enquanto tal. 

Há dias, passou pelos meus olhos a fotografia de uma rapariga que, em pleno protesto, assoprava bolas de sabão na cara de um polícia equipado até aos dentes. Associo as bolas de sabão à infância, a uma das brincadeiras que me encantava quando frequentava esse grupo etário. A jovem rapariga exibia o despreocupado assoprar das bolas de sabão perante a pose gélida e imóvel do polícia de serviço. 

As bolas de sabão são portadoras de sonhos. Dos sonhos implausíveis, dos sonhos rarefeitos como o interior de uma bola de sabão. É dentro das bolas de sabão, e antes de rebentarem pela exaustão, que os sonhos são podados. Terminam com o prazo de validade da bola de sabão, mas enquanto foram sonhos serviram para animar as vidas sofridas dos que protestam contra um determinado estado de coisas. 

As bolas de sabão iam além do polícia. Na metáfora perfeita dos sonhos que nem a força da autoridade consegue estorvar.

11.8.25

To be continued (short stories #495)

The Jesus and Mary Chain, “Blues From a Gun”, in https://www.youtube.com/watch?v=TIOim3J-jpU

         As velas escarlate assobiam as estrofes espontâneas. Ninguém sai à rua, está uma chuva de Verão que faz desabar os céus. Há segredos que repousam nas fronteiras de cada um, silenciados por serem segredos. Não se prevê a sua revelação. Muitos deles serão sepultados com quem os tutela. As ruas passam pelo olhar que se desprendeu das âncoras do dia. A sorte dos audazes corre por sua conta. E nós corremos contra o muro do tempo, as mãos inundando os rios diuturnos. Quem desaconselha os conselhos ajuramenta o silêncio para memória futura. E se o tempo andasse ao contrário? E se as palavras sobressaltadas se arrumassem num inventário sem autor e todos os rostos fossem anónimos? Os dias que se concluem sussurram a sua indiferença: protestam horas extraordinárias que lhes dariam a possibilidade de adiar a alvorada do dia consecutivo. Reféns dos santuários que prometem o porvir, vertem-se procrastinações sobre as folhas do tempo. Dizemos: o dia de hoje não fica por aqui, amanhã é a sua extensão. E muito embora as convenções ensinem que os dias obedecem a calendários e vetustos cânones, desafiamos tudo o que esteja estabelecido: dias há que não findam à meia-noite. Conservamos a chave-mestra que decide quando desalfandegar o dia neófito, mesmo que já não demore o entardecer. Não temos medo da insolvência do tempo, se assim procedermos. Às vezes, é melhor deixar as pendências para o momento devido. Sem recurso aos tribunais do tempo nem acolher a audácia dos mestres de obras que enfiam os dias em meticulosas vinte e quatro horas. Prometemos que as pendências serão curadas a tempo de ainda serem tempo. Depois julgamos a oportunidade do adiamento, empenhados pela imparcialidade de modos. Até lá, esperamos com a paciência de quem sabe não ter provimento para apressar o tempo.

8.8.25

Fora do baralho (short stories #494)

Ólafur Arnalds ft. Arnor Dan, “So Close”, in https://www.youtube.com/watch?v=hi5Wg2vND3k

       Havia os párias – os que não se compunham pela métrica dos outros e se refugiavam na voz da solidão. Sentiam-se corpos estranhos, as velas enfunadas a esgrimir vontades contra os ventos, ou como se fossem rochas na embocadura da maré a ficarem submersas quando a maré se compunha alta. Os párias não eram um grupo – deles não se dizia que tinham coesão interna, ou um sindicato que reivindicasse a seu favor; todos os párias não se conheciam e conheciam pouca gente sem pertencer ao grupo dos párias que afinal não era um grupo. Quando tinham de sair à rua e sentir vestígios de outras pessoas, metiam a cabeça entre os ombros, punham a sua pior carantonha para amedrontar os transeuntes, escorrendo toda a antipatia que era a gramática da misantropia. Num baralho, era aquela carta transviada, perdida algures por um jogador distraído – a carta a fazer o seu exclusivo caminho, a partir daí. Uma carta aliviada por já não estar ensanduichada entre as demais cartas. Sempre dissera que essa condição amputava a respiração e não era congruente com a afirmação da vontade. Não se incomodava que o olhassem com desconfiança. Não tinha bons modos – não queria ser avaliado por uma simpatia que, a existir, era forçada e artificial. Incomodava-se com a proximidade dos outros, que eram sempre intrusos. Dependia dos outros no que era exigido depender, limitando a dependência a mínimos olimpicamente estabelecidos pela usura de querer levar a solidão pela sua mão afetuosa. Às vezes, sonhava acordado – meteu uma cunha a uma entidade alcandorada a um estatuto superior, para que a morte não o demorasse numa decadência inútil. Era tutor exclusivo de outra inutilidade: apesar da sua pária condição, detinha um coração imbatível na métrica da generosidade. Nem assim arbitrou a conversão – nunca quis entrar no templo dos confrades das palavras demasiado gastas, dos sorrisos amarelecidos e dos aventais cerzidos na hipocrisia. 

7.8.25

A gramática da morte

Kangding Ray, “Blank Empire”, in https://www.youtube.com/watch?v=4AyIAbjJ7p4

(Depois de “Sirât”, realizado por Óliver Laxe)

A morte espectral acorda todos os dias à espera de presa. Não sabemos se somos o número que cai na taluda da morte. Não estamos preparados. A morte, quando aparece sem ser anunciada, é um tremendo abalo sísmico. O chão desaparece sob os pés e, por uns instantes, mergulhamos vertiginosamente nos duros contrafortes da morte. Alguém deixa de pertencer aos vivos. Encomendam-se as preces e convoca-se o fio onde moram as memórias. 

E depois aterra a violência da consideração metafísica da morte. Nas cerimónias fúnebres, caldeia-se a esperança com a morte: diz-se que a morte é apenas a transição para uma promessa de vida imorredoira com palavras circunstanciais, mas elas também são sísmicas, reduzem os vivos à condição de instrumentos nas mãos de uma divindade. Parece que os vivos, em sofrimento pela despedida que dedicam à pessoa que partiu, são castigados pelo sortilégio de continuarem vivos. As cerimónias são uma forma de torturar os vivos. E um alívio: os vivos sabem que serão poupados ao ritual quando for a sua vez de serem homenageados. Esse descanso só lhes é garantido quando deixarem de figurar entre os vivos. 

O ritual da morte está profundamente errado. A voz comum adverte, como se a advertência fosse imprescindível, que a morte é a única certeza na vida. Essa certeza é um património partilhado pela vida fora. E, contudo, não estamos preparados para suportar a dor lancinante da morte quando ela chega sem aviso prévio. Como se a morte fosse, afinal, uma surpresa, um acontecimento inesperado. Ou como se ela estivesse obrigada a avisar com antecedência. Nem assim estaríamos preparados.

Outro erro ritualizado é o elogio fúnebre. O elogio, raramente formalizado em vida, é convocado na hora da morte com dotes inflacionados. O ritual encorpa uma hipocrisia não admitida: na herança sucessiva entre os que partem e os que continuam vivos, estes dedicam as melhores palavras aos que partem como se essa fosse uma empreitada tacitamente endossada aos que depois deles forem incumbidos de materializar a elegia. Uma responsabilidade comum que cimenta a solidariedade entre gerações. 

O problema maior da morte é que julgamos ser sempre extemporânea a hora que ela nos dedica. Vivemos de menos. Partimos sempre cedo de mais, por mais avançado que seja o relógio da morte. Não estamos preparados para a paragem do relógio. A morte é aquele choque frontal com a medida desmesurada da vida no seu acesso, a ideia sem forma que é imaginar um dia em que acordamos sem sermos testemunhas. Ou, virando a formulação a outro avesso, perguntamos como é possível a vida continuar a existir se não estamos vivos para presenciá-la. 

A contingência é a gramática da vida. Devíamos estar permanentemente preparados para o avesso da vida, mesmo nos casos em que ele se faz anunciar com a brutalidade de um ato sem aviso prévio. Porque a consequência de ser trespassada pela contingência faz com que a vida seja uma teia de finos fios, tão frágil que só damos conta da sua fragilidade quando ela faz uma aterragem forçada e leva uma vida consigo. 

Se essa é a ordem das coisas, nunca devíamos assumir o lugar de um juiz para condenar a morte pela violação da justiça.

6.8.25

Um porco na baía não faz a Baía dos Porcos

Deftones, “Bored”, in https://www.youtube.com/watch?v=-WdYo3WlETY

Se aparece um porco numa baía, não sendo o bácoro fauna habitual dos areais, o fenómeno é suficiente para mudar a toponímia e convencionar que aquela passa a ser a Baía dos Porcos? 

Não tenho por hábito comentar comentários sobre o que escrevo. Não o faço por arrogância intelectual, como se os comentários merecessem apenas indiferença. Pelo que vou lendo, as caixas de comentários em jornais são locais pouco recomendáveis, prosperando o argumento vulcânico e a ofensa, que depressa se constitui em arsenal para desqualificar os argumentos criticados. São úberes da desrazão. Por isso prefiro não responder aos comentários. Não ignoro; apenas não respondo. 

Anteontem foi publicado, na edição online do Público, um artigo de opinião meu intitulado “O naufrágio da civilização (contra a fascização de quase tudo)”. Logo à partida, estabeleci as minhas premissas: “[o]s partidos de extrema-direita, ou de direita radical, (...) que transpiram fascismo ou são portadores de uma retórica que se aproxima do fascismo (...) são miasmas que devem ser combatidos com as ferramentas da democracia e da cidadania.” Esta premissa serviu como alerta para os efeitos contraproducentes da tendência de “fascização de tudo”. A prova está no crescimento eleitoral dos partidos que reproduzem ou se aproximam de uma retórica neofascista. 

Na caixa dos comentários, prosperou a tresleitura dos meus argumentos. Por exemplo: “[c]onversa para tótós, velha como o fascismo e por ele aclamada, ela sim instrumental para banalizar e adormecer consciências democráticas e lançar a confusão”, o que me encostou ao que, no final do artigo de opinião, considerei ser o anátema dos ávidos antifascistas de plantão: “quem não se revê no fascismo e não o denuncia em todas as suas manifestações é dele cúmplice, sendo contaminado por essa lama hedionda que vem alastrando no tempo e no espaço. Ou se é ativista na denúncia do fascismo latente, ou se é fascista por omissão.”

Entre lampejos de alucinação (“(...) agora subverte-se a imprensa e entrega-se a economia aos compinchas, para que a população não saiba de nada, que alguns votos contem mais que outros e que se vote como manda o patrão”), passando pelas conclusões de um comentador que introduzem um tema que não foi objeto do texto comentado (“a culpa da vaga neofascista (...) é de quem a combate. Já conhecemos essa teoria, só falta dizer que somos todos woke...”), aos meus comentadores não faltou a sugestão de que sou intérprete do branqueamento do neofascismo por omissão. Muito embora tenha argumentado, com a clareza que me é possível, que estes partidos que se aproximam perigosamente de uma retórica fascista representam uma “(...) deriva grotesca, (...) um retrocesso civilizacional, ocupando a trincheira da denegação da História; e conspurcando o espaço demoliberal que medrou depois da derrota dos totalitarismos em 1945 e em 1989.”

Talvez esta derradeira alusão (à derrota do totalitarismo comunista, que se iniciou com a queda do muro de Berlim) explique uma certa “afeção” dos críticos comentadores, que talvez tenham acusado as dores de quem não se revê no meu diagnóstico por considerarem que a ideologia que personifica esse totalitarismo tem legitimidade para ser associada à ideia de democracia. Não lhes interessa reconhecer que não me revejo, de todo nem em parte nenhuma, nestes perigosos partidos de extrema-direita que têm vindo a cavalgar a popularidade nas preferências dos eleitores. Só lhes interessa a defesa da sua causa (o que é legítimo), mesmo que para o efeito tresleiam o que escrevi e me imputem o que não defendi. 

No artigo de opinião, não falei uma única vez da extrema-esquerda (a não ser para identificar a existência de populismos de esquerda radical, que os há) e não sugeri a autocensura dos ativistas antifascistas. Mesmo assim, depois de um comentador cripticamente me atribuir a proclamação “[e]squerda radical é tudo aquilo que me desagrada”, um outro comentador endereçou-me a seguinte pergunta de retórica: “[e]ntão dizer não às sombras do fascismo que nos escurecem os dias é arrogância intelectual e extremismo de esquerda?! Está bonito isto...” O que defendi, imputando essa arrogância intelectual, foi num contexto específico que foi ignorado pelo comentador: a arrogância, aliás, a postura antidemocrática, de quem questiona os resultados das eleições e defende uma assimetria entre os eleitores, encostando os eleitores de partidos de extrema-direita a um défice cognitivo. Se isto não é arrogância...

Em lugar algum do texto sugeri uma modalidade de (auto)censura aos diligentes antifascistas de serviço. Apenas argumentei (a opinião ainda é livre) que este ativismo antifascista, que atribui o rótulo de "fascismo" a tudo e a qualquer coisa, tem efeitos contraproducentes, comprovados pela paisagem eleitoral pelo mundo fora. Daí a perguntar, como fez uma comentadora, “vou-me calar? Nem pensar nisso é bom, senhor articulista Paulo Vila Maior...”, como se tivesse sido isso que argumentei, é próprio de quem está acossado por fantasmas e depressa escorrega para conclusões infundamentadas.

O coitado do reco, talvez desnorteado, ou apenas querendo pisar terrenos que não pertencem à sua coutada, arrimou à baía. Depressa os serviçais das convenções quiseram enlamear aquela baía, rebatizando-a como Baía dos Porcos. Contaminados pela febre das generalizações, nem deram conta que um porco não constitui uma vara. O meu artigo de opinião pretendia ser uma modesta chamada de atenção para os efeitos adversos do febril ativismo antifascista. A colheita de comentários é a melhor prova da sua utilidade. Sem saberem, ou sem talvez o perceberem, os meus comentadores acabaram por validar o principal argumento exposto no artigo de opinião.

(Romper o hábito de não responder aos comentadores, e de forma delongada, talvez se explique pela época estival que atravessamos.)

5.8.25

Os amigos e o rock (short stories #493)

The Smiths, “This Charming Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=cJRP3LRcUFg

          Os amigos veneravam o rock. Dissidiam das modas coevas (o trance, a música “urbana” – nunca perceberam o que distinguia a música assim rotulada e outros géneros musicais produzidos em cidades –, o reggaeton). A veneração, para muitos deles, prolongava a inércia que impedia a atualização dos gostos musicais. Estavam parados no tempo. Um evocava os Bauhaus. Outro, os Jesus and Mary Chain. Um terceiro continuava a ouvir com regularidade os Cure, mas recusava-se a escutar a música feita após uma determinada data (que ele não sabia determinar). Ainda havia outro que reverenciava os Clash. Cresceram no tempo à medida que a música que ouviam tinha sido esquecida, como se andasse a destempo. Idolatravam a música feita por e com guitarras. Ainda no pós-adolescência, começaram a ter violentas discussões com outros melómanos que faziam concessões a sintetizadores. E se foram agrestes, essas refregas, que acabavam sempre com um encolher de ombros dos outrora ouvintes de Joy Division que, entretanto, passaram a ouvir New Order. Como é próprio da natureza humana, as discussões perdem-se no acessório e depressa se esquece o principal. Décadas depois, a maioria continuava a viver como se ainda estivesse nos anos oitenta e noventa. Às vezes ressuscitavam, quando Peter Murphy, Iggy Pop, Sisters of Mercy, Pavement saíam da reclusão e anunciavam um concerto. Os amigos do rock resgatavam a parafernália iconográfica das bandas que despertaram do torpor. Sentia-se um pulsar novo nas veias em muitos casos decadentes. Como se o tempo fizesse um voo e agarrasse as décadas esquecidas pela erosão que o tempo não deixa de habilitar. Desperdiçavam os tempos novos que eles também eram pródigos em nova música. Um dia, um observador desinteressado comentou que os amigos do rock eram datados. Quem lhes dera saber que a música nova, que também existe na gaveta do rock, rejuvenesce espíritos abertos.  

4.8.25

Na ópera matam-se advogados, sobretudo se forem gongóricos (short stories #492)

CMAT, “The Jamie Oliver Petrol Station”, in https://www.youtube.com/watch?v=BTWg-Ky6VZU

                    As vozes barítonas faziam a vez de juízes fora do quadro, de tribunais sem foro, que se limitavam a julgar advogados quando estes eram acusados de conspiração contra a justiça. A conspiração podia ser por os advogados arrastarem a justiça para além da compreensão do próprio tempo. Ou por inundarem os tribunais com peças processuais, requerimentos e intervenções nas sessões de julgamento, que eram autênticos monumentos gongóricos. Nessa altura, abrir-se-iam as portas da ópera adjacente ao tribunal, subindo a cena os cantores líricos para fazerem um julgamento sumário dos advogados que desacertaram as contas da justiça. Os artistas entoariam em cânticos o libelo acusatório, dando direito de resposta aos advogados acusados. Não sendo um tribunal com a cobertura legítima dos órgãos de soberania, seria um tribunal tributário dos princípios do Estado de direito. Com uma exceção: se a ofensa à justiça fosse grave – o juízo seria inapelável e estaria nas mãos dos cantores de ópera que subiram a cena – seria decretada pena de morte. Os cantores líricos liam a sentença em cantos operáticos. Os demais detalhes (o dia e o lugar da consumação da pena e o modo de executar a sentença) seriam secretos, para não alimentar o espetáculo tétrico de que os advogados lenientes foram precursores. Até que um dia, fruto da erradicação desses advogados que tanto foram lesando a justiça, ao ponto de serem agentes primordiais da sua denegação, já não houvessem óperas instaladas na adjacência dos tribunais. Saber-se, mais tarde, que muitos dos cantores de ópera reconverteram as carreiras e passaram a ser distintos advogados das praças nacionais. Sabiam por experiência própria o que não podiam ser enquanto advogados. Por via das dúvidas, antes de transitarem para a advocacia, os cantores operáticos encerraram todas as óperas. 

1.8.25

A União Europeia foi “comida” pelos Estados Unidos? (Oito breves notas)

Max Richter, “Non-Eternal”, in https://www.youtube.com/watch?v=RKf7MuDdp4Q

1. Segundo Viktor Orbán, “Trump comeu von der Leyen ao pequeno-almoço” durante as negociações comerciais na Escócia, em 27 de julho. (Se Orbán reproduzisse o linguarejar nativo – o nosso –, diria que a presidente da Comissão foi “comida de cebolada”.) Só uma análise infantil, ou a idolatria, consegue chegar a tamanha conclusão. 

2. Este processo negocial tem de ser entendido para além da espuma do dia. As atenções têm de se virar para a estratégia da estratégia. Trump é um ator político que navega à vista dos efeitos imediatos. Se estivesse vocacionado para uma política (interna e internacional) que enfatizasse os efeitos de longo prazo, não era errático como é. A União Europeia (UE) é mais cuidadosa na configuração das suas políticas. Pode ter de lidar com diferentes sensibilidades nacionais, o que muitas vezes a obriga a adotar compromissos minimalistas; mas também porque, na articulação entre as instituições envolvidas no processo de decisão, procura orientar a estratégia política para obter proveitos no médio e no longo prazo. A União tem demonstrado, em várias iniciativas políticas, que é preferível sacrificar o curto prazo em favor dos efeitos diferidos no tempo. A espuma dos dias e a aparência de que a UE saiu perdedora neste processo negocial não consideram os efeitos significativos que se esperam deste acordo comercial.

3. Uma negociação internacional não é o retrato de um viril braço de ferro nem se enquadra na correspondente imagem marialva que apura quem sai por cima. Perfilhar esta interpretação não só passa ao lado da dinâmica das negociações internacionais como reproduz uma visão pueril, talvez condicionada por uma abordagem eivada de masculinidade (tóxica). Quem negoceia para dobrar o braço da outra parte, não está comprometido com uma negociação autêntica; limita-se a impor a sua vontade à outra parte. Não passa de uma ostentação de poder.

4. Em qualquer negociação, por vezes é preferível aceitar a lógica da limitação de danos. Um mal menor, e com (alguma) garantia de cumprimento, é preferível à incerteza desenfreada, o pior dos males. Tanto os EUA como a UE têm a perder com a manutenção da beligerância comercial, ou com as constantes ameaças de recurso à bagagem de armas protecionistas, seguida das medidas retaliatórias consequentes. O comportamento racional está do lado de quem recusa a incerteza inerente a uma guerra comercial sem quartel. Se, do outro lado, está um parceiro que não receia obter ganhos de causa à custa da ameaça e da pressão e do sequestro da vontade, os custos da contingência negocial correm por sua conta.

5. Alguns críticos do resultado destas negociais propõem uma leitura simbólica do acordo alcançado. Destacam a assimetria visível, manifesta nas muitas concessões feitas pela UE sem que os EUA tenham cedido em medida equivalente. Se a UE fez mais concessões, isso enfraquece-a? Parece que é, antes, um sinal da assimetria negocial e das diferentes estratégias adotadas (competitiva e hostil pelos EUA; cooperativa e construtiva pela UE). Só quem não entende os rudimentos da negociação internacional é que pode associar a fraqueza da UE às maiores cedências que fez.

6. Recomenda-se o reconhecimento de outros efeitos simbólicos que passaram à margem do radar dominante: foi a UE que se empenhou mais em fechar o acordo, logo, foi a UE que adotou o comportamento construtivo – daí as concessões e a ausência delas da parte dos EUA. É à Europa que se fica a dever o privilegiar de uma via negocial por oposição à ameaça de retrocesso vertida no unilateralismo de quem, à partida, ameaçou sequestrar o processo negocial. É à UE que se fica a dever o travão ao abismo do protecionismo, com todos os ganhos (económicos e não económicos) associados a esse resultado, até para quem (os EUA) estava menos comprometido em alcançar esta solução negociada. Não se diga desta postura da UE que é reveladora da sua fraqueza.

7. Ler “estados de espírito” (como alguns, possivelmente especialistas em decifrar expressões faciais, fizeram) pode ser um equívoco. O rosto fechado de Ursula von der Leyen, a contrastar com o ar folgazão de Trump (e novidades?), não é o barómetro fidedigno do processo negocial e do seu resultado e dos consequentes “estados de espírito”. Trump tem-se destacado pela rudeza que dedica a congéneres seus, o que pode ser intimidatório. Já alguém se perguntou por que estava von der Leyen desconfortável perante a bazófia e a mal disfarçada má educação do presidente dos EUA – e que tenha sido esse o fator explicativo do seu ar combalido?

8. O acordo é assimétrico – e depois? Talvez seja a materialização de uma espécie de psicologia invertida (em sentido metafórico): quem mais cedeu foi o parceiro negocial que, à partida, está numa posição competitiva privilegiada; ou seja, quem mais tem a perder no plano da competitividade internacional é que assumiu a posição hostil e ameaçou com a bomba retardadora do protecionismo. Já a UE deu-se ao luxo de sujeitar as suas exportações para os EUA a direitos aduaneiros de 15% sem prejudicar o sucesso dessas exportações. Afinal, a UE foi forte pela disponibilidade em fazer concessões. O elo fraco foi a outra parte. Para grande convulsão das leituras eivadas de virilidade máscula, virando essa masculinidade do avesso e tornando-a, definitivamente, inaplicável como grelha interpretativa das negociações internacionais.