7.8.25

A gramática da morte

Kangding Ray, “Blank Empire”, in https://www.youtube.com/watch?v=4AyIAbjJ7p4

(Depois de “Sirât”, realizado por Óliver Laxe)

A morte espectral acorda todos os dias à espera de presa. Não sabemos se somos o número que cai na taluda da morte. Não estamos preparados. A morte, quando aparece sem ser anunciada, é um tremendo abalo sísmico. O chão desaparece sob os pés e, por uns instantes, mergulhamos vertiginosamente nos duros contrafortes da morte. Alguém deixa de pertencer aos vivos. Encomendam-se as preces e convoca-se o fio onde moram as memórias. 

E depois aterra a violência da consideração metafísica da morte. Nas cerimónias fúnebres, caldeia-se a esperança com a morte: diz-se que a morte é apenas a transição para uma promessa de vida imorredoira com palavras circunstanciais, mas elas também são sísmicas, reduzem os vivos à condição de instrumentos nas mãos de uma divindade. Parece que os vivos, em sofrimento pela despedida que dedicam à pessoa que partiu, são castigados pelo sortilégio de continuarem vivos. As cerimónias são uma forma de torturar os vivos. E um alívio: os vivos sabem que serão poupados ao ritual quando for a sua vez de serem homenageados. Esse descanso só lhes é garantido quando deixarem de figurar entre os vivos. 

O ritual da morte está profundamente errado. A voz comum adverte, como se a advertência fosse imprescindível, que a morte é a única certeza na vida. Essa certeza é um património partilhado pela vida fora. E, contudo, não estamos preparados para suportar a dor lancinante da morte quando ela chega sem aviso prévio. Como se a morte fosse, afinal, uma surpresa, um acontecimento inesperado. Ou como se ela estivesse obrigada a avisar com antecedência. Nem assim estaríamos preparados.

Outro erro ritualizado é o elogio fúnebre. O elogio, raramente formalizado em vida, é convocado na hora da morte com dotes inflacionados. O ritual encorpa uma hipocrisia não admitida: na herança sucessiva entre os que partem e os que continuam vivos, estes dedicam as melhores palavras aos que partem como se essa fosse uma empreitada tacitamente endossada aos que depois deles forem incumbidos de materializar a elegia. Uma responsabilidade comum que cimenta a solidariedade entre gerações. 

O problema maior da morte é que julgamos ser sempre extemporânea a hora que ela nos dedica. Vivemos de menos. Partimos sempre cedo de mais, por mais avançado que seja o relógio da morte. Não estamos preparados para a paragem do relógio. A morte é aquele choque frontal com a medida desmesurada da vida no seu acesso, a ideia sem forma que é imaginar um dia em que acordamos sem sermos testemunhas. Ou, virando a formulação a outro avesso, perguntamos como é possível a vida continuar a existir se não estamos vivos para presenciá-la. 

A contingência é a gramática da vida. Devíamos estar permanentemente preparados para o avesso da vida, mesmo nos casos em que ele se faz anunciar com a brutalidade de um ato sem aviso prévio. Porque a consequência de ser trespassada pela contingência faz com que a vida seja uma teia de finos fios, tão frágil que só damos conta da sua fragilidade quando ela faz uma aterragem forçada e leva uma vida consigo. 

Se essa é a ordem das coisas, nunca devíamos assumir o lugar de um juiz para condenar a morte pela violação da justiça.

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