29.8.25

A miopia intencional (short stories #505)

New Order, “Leave Me Alone”, in https://www.youtube.com/watch?v=THdLMFzJjG0

          O mundo está avariado. Faltam mecânicos para o reparar. Apuram-se os valores, numa ética refinada que preenche páginas e páginas de compêndios – os manuais de instruções para os que aspiram a uma certa pureza no trato com os outros. E, no entanto, os gestos quotidianos e as palavras sucessivas afastam-se dos cânones. Nunca foi tão paradoxal situarmo-nos no mundo. Há quem sugira diagnosticar os males, convocando as capacidades cognitivas para encontrar a reparação habilitada. Se os esforços malograrem, não se pode acusar quem tentou saber da solução que erradicasse os males inventariados. Às vezes, é por um acaso que as soluções erram. Outras vezes, a boa fé é insuficiente para uma prescrição acertada e os problemas continuam por resolver. Ou então, reconhecida a gigantesca dimensão das doenças que acometem o mundo, recorre-se ao fingimento. Faz-se de conta que os problemas que contaminam o mundo não são vistos. Ou, num procedimento alternativo, finge-se uma miopia que não existe. Essa miopia impede a revelação das fraquezas do mundo. Não se diga que este método é uma capitulação. Perante a escala dos males que desaconselham o mundo e a incapacidade de cada pessoa contribuir para uma correção capaz de alguns desses males, o método viável é olhar para o lado ou, não sendo esse o caso, fingir uma miopia pericial. E recusar os óculos a preceito, teimando na miopia que previne o olhar de ser desafiado pelas sucessivas levas de males que açoutam o mundo. Através da miopia, estabelece-se um mundo paralelo – um sonho, ou um pesadelo, que a possibilidade não pode ser invalidada, que delimita o espaço congruente com o fingimento basilar. Esta miopia não é uma afeção do olhar; é uma cortina que intercede a favor da lucidez possível, afastando dele as tergiversações que adiam a reparação do mundo. 

Sem comentários: