21.8.25

Unhas roídas (short stories #499)

Slowdive, “Hide Her Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=L35RECpGefM

          As unhas roídas, em vez de outra catástrofe qualquer. Pensava, enquanto discernia as borras que assentaram no fundo da chávena do café: antes roídas as unhas, um autêntico manifesto de antiestética, ou uma obra de arte da má educação, do que ser autor da sementeira de males maiores. Roer as unhas como um aviso de emergência atmosférica que põe as pessoas de atalaia para as perdas e danos que sobrevêm a uma tempestade. Os sobressaltos são aplacados através do metódico, e todavia caótico, nervoso roer de unhas. Um perito em roer as unhas clarifica a epistemologia da função: quanto mais próximo do sabugo, mais terapêutico é o roer de unhas. As beligerâncias ficam anestesiadas. As palavras que podiam ferir outras pessoas não chegam a ser desalfandegadas. Os suores frios não são debitados. As insónias são adiadas para núpcias piores. Em vez desses sismos interiores, as unhas oferecem-se como vítimas sacrificiais. Ficam curtas de mais, atrozmente feias, a bem da paz interior de quem não tem vergonha de exibir as roídas unhas em público. Se os estetas protestam contra a feiura das unhas roídas, mostrando, a seu favor, os maus pergaminhos da má educação de quem, em público ou em privado, rói as unhas; e se insinuarem a hipótese de tais viciados serem obrigados a usar luvas em público (como se fosse preciso condená-los à ostracização), contraponha-se que a estética e a boa educação devem ceder perante o bem maior da paz de espírito. As unhas roídas só são motivo de desorgulho para os impecáveis zeladores da moralidade pública. Podem ser exemplares a respeitar os cânones, podem ser faróis da boa educação; mas serão, muitas vezes, almas interiormente torturadas por reprimirem o hábito de roer as unhas. Às vezes, os médicos passam receitas que recomendam o ato de roer as unhas. 

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