13.8.25

O Tribunal Constitucional é o patinho feio do regime (mas não devia sê-lo)

Royal Blood, “Little Monster” (live at Later...With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=PHBJpCjq50E

Aconteceu outra vez: o Tribunal Constitucional (TC) entrou em cena, a pedido do presidente da república, para apreciar a constitucionalidade da lei dos estrangeiros. Como de outras vezes em que estavam em causa assuntos controversos com potencial de dividir a sociedade, o TC agradou a gregos, mas não agradou aos troianos. 

Como nas outras vezes, os que ficaram contentes com o acórdão aplaudiram-no e relembram que o TC é o zeloso guarda-costas da Constituição; os que viram a sua posição invalidada denunciaram a parcialidade do Tribunal. O auge do ataque é acusar o TC de ser um órgão político. Essa acusação materializa a parcialidade do TC. Qualquer tribunal que seja acusado de parcialidade vê a sua autoridade questionada, por não corresponder à imagem da justiça associada à figura de Themis. Este libelo é produto da ira que se abate sobre o TC. O tribunal passa a ser um ator político por entrar no tabuleiro da política, já não estando limitado pelas baias das funções jurisdicionais. Os críticos (os de hoje, os de ontem e os de amanhã) acentuam a adulteração do TC e duvidam da sua reputação. Este comportamento motiva quatro observações. 

Primeiro, o TC não é um tribunal qualquer. É o tribunal acima de todos os tribunais e garante a constitucionalidade das leis. Dá amparo à legitimidade política dos governos. Os que, destilando fel por um acórdão do TC que lhes é desfavorável, desprezam o TC com a acusação de ser um órgão político estão contaminados pelo estado febril da disputa político-partidária, desconhecendo o perfil do TC. É que a Constituição é uma lei fortemente politizada, ou não contivesse os alicerces do sistema político de um país. 

Segundo, quem tem falta de fair play democrático e acusa o TC de se ter tornado um órgão político está a profanar a dignidade (que devia estar) associada a este tribunal. Ignoram (ou fingem ignorar) que a verificação da constitucionalidade é uma tarefa interpretativa. As normas constitucionais, que servem de padrão para aferir se uma determinada lei é constitucional, não são impermeáveis à subjetividade interpretativa. É uma dupla subjetividade: da lei escrutinada e das normas da Constituição que servem de guia para apurar se aquela lei não entrou em rota de colisão com a Constituição. Partir daqui para considerações sobre a intencionalidade política dos juízes do TC é abrir uma caixa de Pandora que, nestes tempos de sequestro da democracia por movimentos populistas de diferentes extrações, contribui para a fragilização das instituições que devem garantir os alicerces jurídico-políticos da democracia.

Terceiro, esta animosidade contra o TC terá origem no processo de escolha dos juízes, que peca por excesso de politização (melhor: de partidarização). Quando se apura o sentido de voto dos juízes, a imprensa e os políticos atiram-se ao inventário do “quem foi escolhido por quem”. Os que entraram pelo contingente do PS são colados às opções políticas deste partido e os que foram designados pelo PSD votam a favor de interpretações consentâneas com a estratégia deste partido. Esta é uma visão redutora. Passa por cima da imparcialidade que, por definição, entronca na atividade de um juiz, qualquer que seja o tribunal. O TC, mais politizado do que outros tribunais, não escapa a este axioma. Estes momentos de controvérsia que arrastam os juízes para a parcialidade exigem repensar o processo de escolha, não o tornando tão permeável à luta político-partidária. Para que os juízes não sejam vistos, erradamente, como o juiz X escolhido pelo partido Y e, portanto, fiéis aos interesses do partido que o escolheu para o TC.

Quarto, é pueril (para dizer o mínimo) que quem não se revê na posição adotada pelo TC caia tão depressa numa reação primária, tão ao jeito do tribalismo do futebol. Um dos males que afeta a democracia é a permeabilidade da política ao futebol, importando certos tiques que contribuem para a sua corrupção. Afirmar, como fez um deputado do CDS, que o TC ignorou a mudança de paisagem político-partidária após as eleições legislativas, faz pensar se terá bolçado esta boutade após o almoço e qual seria o grau de alcoolémia – de outro modo, era chamá-lo à pedra e convidá-lo a renunciar ao cargo, por impreparação para ser representante dos eleitores por manifesto desconhecimento das regras do sistema político. Parece aquelas reações tribais típicas do universo que gravita à volta do futebol: o árbitro é aplaudido quando a equipa ganha; quando a equipa perde, as culpas recaem em grosso sobre o árbitro, por detetarem intencionalidade nas decisões que inclinaram o campo a favor do adversário. 

O TC é o patinho feito. A reputação do TC fica degradada por essas campanhas com muito acolhimento mediático, mas que passam ao lado do essencial. Era só indagar quantos dos críticos de acórdãos do TC, situados em diferentes trincheiras, leram esses acórdãos para depois sustentarem as críticas ou o aplauso? Pelo caminho, os juízes, que deixam de valer pelo nome e pela fundamentação da sua interpretação, apenas contam pelo contingente partidário pelo qual entraram no Palácio Ratton. 

Os radicais e populistas de diversas extrações agradecem a deferência. Nem precisam de combater a democracia; há quem o faça por eles por dentro do sistema político.

Sem comentários: