28.11.25

XLII

The Cure, “Secrets” (live from Troxy 2024), in https://www.youtube.com/watch?v=dqG3EqAz4OA  

I saw the crescent

you saw the whole of the moon.”

Estavam todos ofendidos, a sensibilidade a irromper à flor da pele: “que golpe de teatro”, exclamavam, com a exclamação de quem emprestava cor ao ultraje de que se consideravam vítimas. Podia lá ser, tamanha a usura dos que subiram a cena e ensaiaram um golpe que não era de Estado, era apenas um golpe de teatro. Não podiam tolerar a infâmia: no embrulho estava escrito, com todas as letras, “golpe de Estado”. Não se pode aceitar uma farsa tão ingenuamente montada. O golpe, mesmo que fosse profundo, era só de teatro. Como aqueles golpes que esventram as castanhas antes de passarem pelo fogareiro, colorindo o outono com um dos seus sabores preferidos.

Quando prometem um golpe de Estado, não podemos ficar contentes com um golpe de teatro. Nisto de golpes, tirando os das artes marciais, que respondem a outra escala, existe uma hierarquia. Como é de mau tom para os dias que correm, a haver golpe, que haja sangue derramado. Quando uma sublevação termina em golpe de Estado, irmãos combatem irmãos, uns para depor os outros. Se tiverem de vencer o pleito ou defender-se dos insubordinados vertendo sangue, que esse sangue seja dos que se alojam na trincheira oposta. O estado de ânimo exacerbado não tolera bandeiras brancas esbracejadas numa derradeira tentativa de evitar o derramamento de sangue. A diplomacia faz-se letra morta.

Já um golpe de teatro é um golpezinho, um golpe frustre. Não é suficiente para cozer a pele com alguns pontos. Um golpe de teatro é superficial, não causa grandes dores a quem dele for vítima. Os que têm causas rebeldes e não afastam a contingência da beligerância protestam contra os golpes de Estado que se resumiram a meros golpes de teatro. Estão errados. Porque um golpe de teatro tem a dignidade das artes e não é obrigado à destemperança do sangue vertido pelos que vierem a ser suas vítimas. Pode ser um golpe, mas, sendo de teatro, vale muito mais do que mil armas depostas por vergonha dos que se exercitam a guerrear sistemas políticos decadentes ou como vigilantes de outras causas avulsas que ganharam o lastro do exagero.

Se um golpe de teatro é a despromoção de um golpe de Estado, entretanto abortado, que mereça todos os aplausos que puderem ser arregimentados. Entre um golpe que fica na superfície da pele e outro que vai ao fundo da carne, ensanguentando o chão com a cor da vergonha que não colhe redenção, que venha um milhão de golpes de teatro.

27.11.25

XLI

Ladytron, “Kingdom Undersea”, in https://www.youtube.com/watch?v=U1r3d7wR9is

“The White Hunter sits on his porch

with his elephant gun and his tears

he’ll shoot you for free if you come around here.”

Um concurso de bramidos. Vozes esporeadas umas contra as outras, sobrepondo-se, costurando um tricotado ininteligível. Em sacrifício da mensagem que devia ser o ouro líquido de uma discussão que não fosse atraiçoada pelas desregras. Num caldo de deseducação e intolerância que tornam intoleráveis as intermináveis procissões de gente pequenina e mesquinha quando as ideias diferentes se terçam em público. Todos os códigos de conduta já foram dissolvidos na espuma da torpeza.

Os efeitos de contágio propagam-se à velocidade da luz. Fora do espaço mediático, sem a participação das personagens que não passeiam o anonimato quando se cruzam com a pessoa comum, a incapacidade de ouvir sem atropelar com a fala, a indisponibilidade para aceitar ideias diferentes, a que devia corresponder a capacidade de argumentar em favor de ideias contrárias com a urbanidade de quem alicerça os argumentos, a propensão para confundir os que são diferentes com inimigos que abjuram sem contemplações – este é o ar do tempo puído que nos trespassa com dor. 

Os aspirantes à notoriedade imitam os que já atingiram esse estatuto. Talvez lhes escape a lucidez de admitirem que não foram feitos para copiar acriticamente aqueles cujo estatuto ambicionam ter. Talvez não percebam a decomposição da qualidade quando essas personagens saltam para o espaço público e como, à mercê dessa perda de qualidades, os aspirantes não são obrigados a contribuir para a degradação do espaço público e menos público. Estamos condenados à contaminação da lei de bronze: a boa moeda é expulsa pela má moeda. Neste caso, a má moeda, que cavalga no estatuto de visibilidade pública, perpetua-se nos inúmeros microexemplos dos que aspiram a ser cópias baratas e contrafeitas daqueles que ocupam os palcos com visibilidade pública.

Perante este estado de coisas, o mais que apetece é a hibernação. Fingir por dentro de um irrecusável fingimento; mudar de canal, quando se é telespectador; evitar os jornais que informam sobre o andamento do país e do mundo; recusar-se a participar no coletivo lodo ao qual, caso contrário, ficaríamos amordaçados. Porque até as pedagógicas tentativas para quebrar o fogo deste estado de coisas se estilhaçam perante a resistência do exército de gente mal formada que empunha suas armas impiedosas no espaço público e no espaço menos público. Para ser possível acautelar o espaço sanitário, próprio da contaminação de toda a matéria infecta, que comanda o tempo e o espaço. 

Contra esta universalidade, o refúgio de um exílio interior, o ascetismo indeclinável que contraria a propensão a acabarmos por ser iguais aos demais de quem tanto queremos distância.

26.11.25

XL

The Stone Roses, “Fools Gold” (live at Top of the Pops), in https://www.youtube.com/watch?v=k4H4ztXsPrc

Gold road’s sure a long road

winds on through the hills for fifteen days

the pack on my back is aching

the straps seem to cut me like a knife.”

Naqueles tempos de adolescência espúria, calcetavam a mesada com uns biscates aqui e ali. Era a vulgata do espírito do desenrascanço, como acrescentava, em pose filosófica, o tio de um deles, que se recusava a aceitar a idade e insistia em conviver com o grupo de adolescentes espúrios. Sorte a deles. O indivíduo tinha mãos largas e os rapazes tinham acesso a noitadas com os copos todos pagos.

Os adolescentes não nasceram de famílias abonadas. Por isso precisavam de calcetar as mesadas com os biscates. O dinheiro extra vinha a propósito. Era para as extravagâncias. Naquela altura, eram extravagâncias. Anos depois, quando começaram a trabalhar e, para sorte deles, os estudos de excelência os dispuseram para empregos pagos com salários muito acima da média para quem tinha terminado os estudos, os bolsos forrados de notas foram a rampa de lançamento para outras extravagâncias. Nenhum deles constituiu família (que expressão idiomática a despropósito: como se pode aceitar que a família se “constitui”?), porque o hedonismo falou mais alto, ateando uma boémia incorrigível e um rosário de vícios. Nunca souberam o que é poupar. 

O tio de um deles, o homem a destempo que teimava em fazer noite na companhia dos rapazes, já era septuagenário quando eles entraram na casa dos trinta. Um ou outro contratempo de saúde não o dispunha para a boémia extemporânea de outrora, mas fazia questão de estar a par das proezas dos rapazes (dos “meus rapazes”, como gostava de terminar as frases, sem esconder a nostalgia). Depois, deixava que os sonhos levantassem voo e o trouxessem de regresso ao passado. Terminava o exercício à beira do precipício da agonia. 

Os rapazes, agora já homens feitos e, todavia, impregnados de defeitos muitos, não queriam saber de responsabilidades. “Constituir” família era uma prisão e exigia a adesão aos costumes que não estavam dispostos a aceitar. Continuavam a dormir poucas horas. As vinte e quatro horas do dia não esticam, e é preciso encaixar à força, dentro do espaço de um dia, o trabalho, a boémia e um módico de sono. Às vezes, reuniam-se ao entardecer, depondo também eles nostalgicamente sob o efeito do pôr do sol que se fundia com o mar como fio do horizonte. Não sabiam por que caíam na nostalgia – eles costumavam berrar, em momentos mais eufóricos, que não queriam saber do passado nem do futuro e que o seu fado era consumir a fundo todos os segundos que acompanhavam o presente. Dizia: depunham nostalgicamente sob o efeito do entardecer quimérico e perguntavam: e nós, como seremos daqui a vinte anos ou daqui a trinta anos?

Não podiam fingir que o amigo mais velho, aquele que tanto lutara com todas as forças para fingir que o envelhecimento tomara conta dele, era uma amostra do que fora. Concediam, por mais que lhes custasse: a decadência apoderara-se dele e o quadro não era agradável. Antes que fossem assaltados por uma sensação de falsa partida, uma sensação que se repetia com a passagem dos anos, engoliam a nostalgia a destempo e avançavam para outro naco de boémia.

E voltavam a abraçar-se furiosamente ao presente, deixando para memória futura a ausência de memória. 

25.11.25

XXXIX

Primal Scream, “Star” (live from Later...with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=H_1dq-1a4HE

“I’m feeling like a little boy.”

O pequeno barco desafia as ondas ainda não invernais, enquanto a manhã se esforça por derrotar a neblina. Três pescadores manobram as artes de pesca perto dos rochedos que separam o mar do areal. O mar ainda não está invernal, mas já mostra as convulsões próprias de quem foi o espelho das habituais tempestades outonais. O mar prepara-se para o seu estado iracundo quando vierem as tempestades afuracanadas que, às vezes, o Inverno transporta para esta latitude. 

Os pescadores intrépidos fingem ignorar quão arriscada é a sua demanda. O bote bamboleia, levado pela coreografia do mar que parece discreta, mas que já traz ondas à lapela que, por vezes, deixam a pequena embarcação fora do alcance de quem a vê desde terra. É sinal do risco que os pescadores decidiram assumir para uma safra que não compensa tanta audácia. Se chegasse à fala com os três homens, perguntaria se tinham medido o risco e se a fita métrica que usaram não estava desfigurada. Perguntaria se a safra esperada é a medida para superar os riscos de não voltarem a terra. Perguntaria se perguntaram às suas companheiras se aprovaram esta saída despropositada para um mar já tão assustador. Perguntaria, mas em tom moderado, para que os pescadores de circunstância não sentissem que da minha voz se erguia um muro de censura.

Guardo na memória, em pleno Verão, o aparato da salvação de dois homens que, exatamente na mesma zona, tinham ido à pesca. Num pequeno bote, como o dos homens que ontem desafiavam o azar. O bote estava virado do avesso. Uma senhora ao lado falava para quem a queria ouvir: “vi tudo, veio um golpe de mar e o bote virou ao contrário. Eram dois homens.” Repetia a deixa quando sentia a presença de novos mirones. Dois rapazes, nadadores-salvadores naquela praia, tentavam chegar a um dos homens que havia sido atirado ao mar e se debatia para contrariar a sua força centrífuga. O outro estava desaparecido. Nas notícias do dia seguinte, o veredicto: um homem foi salvo; o outro continuava desaparecido.

Há exemplos formidáveis na literatura que narram os infortúnios de pescadores. Alguns, no exímio estilo realista, descrevem como os homens do mar têm de sair ao mar para trazer pão para a mesa da família. E como, algumas vezes, a família fica sem o homem que trazia o pão, para sempre sepultado no mar distante e profundo onde a embarcação naufragou. 

Somos temerários quando não sabemos sopesar o medo; ou, quando transidos pelo medo, superamos os medos e medimos o risco por baixo, com a intencionalidade de quem fecha os olhos e arremete pela loucura. Fechamos os olhos à contingência e, quando damos conta, fomos suas vítimas. Uns, por saírem extemporaneamente para o mar. Outros, por estarem a dormir para a lucidez e serem atraiçoados por um erro de julgamento.

24.11.25

XXXVIII

Deftones, “976-EVIL”, in https://www.youtube.com/watch?v=y8Fy2HcuVcU

“It’s like you never had wings.”

Hoje é o dia internacional de qualquer coisa. Porque há sempre alguma coisa digna de celebração, para que a coisa qualquer não caia no esquecimento e se extinga da memória coletiva. É preciso preservar a memória coletiva para que não sejamos reféns da desumanização por mote próprio. É por isso que os dias internacionais reconhecidos por instâncias superiores levam maiúscula no início; devem ser escritos assim, para impedir a banalização dos dias internacionais, como Dia Internacional Disto ou Daquilo.

Hoje pode ser o dia de uma árvore. Há dias foi o dia internacional da Filosofia, precedido pelo dia internacional das casas-de-banho. Hoje é o dia internacional dos irmãos gémeos. Amanhã será a vez do dia internacional contra a violência exercida sobre mulheres – no mesmo dia em que por cá muitos comemoram o dia nacional da reposição da normalidade democrática. Os dias internacionais desmultiplicam-se ao gosto dos fregueses, daqueles que irrompem com a sua voz influente e conseguem marcar lugar no apertado calendário de trezentos e sessenta e cinco dias que cabem num ano, que só habilitaria a existência de trezentas e sessenta e cinco celebrações a propósito de um dia internacional do que quer que seja. 

A páginas tantas, perante as reivindicações galopantes dos mais variados interesses que também queriam ostentar na lapela a medalha de um dia internacional a si consagrado, o mesmo dia passou a acolher mais do que um dia internacional. Hoje, os dias internacionais de qualquer coisa já superam o número de dias que pertencem a um ano. Para quem quiser saber o que se celebra no dia em que se lembra do assunto, a principal organização internacional inventaria os dias internacionais nesta ligação: https://www.un.org/en/observances/list-days-weeks

(Protesto um lamento: no dia do meu aniversário, não há dia internacional de coisa nenhuma.)

Dantes, os dias internacionais eram raros. Mas era na altura em que a democracia ainda não tinha chegado ao domínio dos dias internacionais, antes de se terem tornado pródigas as celebrações de tudo e mais alguma coisa. Assim são satisfeitas vontades plurais. Só as vozes distraídas é que se esquecem de peticionar um dia internacional em seu favor. A igualdade, a maior patranha da democracia, assim exige. Que interessa se, do outro lado do labirinto, se encontra um cartaz gigantesco ostentando a palavra “banalização”?

Há dias, foi o dia internacional do gato preto. Na minha casa vive um gato preto. Mas dispenso o dia internacional que lhe é consagrado. Porque o meu gato preto é o meu gato preto nos restantes trezentos e sessenta e quatro dias do ano. Estas celebrações ocultam a hipocrisia que fica esquecida nos outros dias do ano, que são o avesso do dia internacional do que quer que seja. É a fatura do princípio geral da imediatização de tudo e mais alguma coisa, parente próximo da banalização intrínseca à existência de dias internacionais para tudo e um par de botas.

Não temos outra serventia para o tempo que nos é dedicado.

21.11.25

XXXVII

Teho Teardo & Blixa Bargeld, “Still Smiling”, in https://www.youtube.com/watch?v=JfpTME1VqEY

“I recall the black days

the blackest one

it’s not the last one,

but it’s there.”

Também chamam penitenciária às prisões. Há países que tratam o conjunto das prisões como o sistema penitenciário. Ora, um sistema penitenciário é o sistema que se penitencia. É um sistema masoquista. Aplica a si mesmo os castigos próprios de quem teve mau comportamento e transgrediu os costumes e as regras por que se deve pautar.

Chamar penitenciária à prisão é eloquente. Os habitantes temporários das prisões cumprem castigo. Os crimes são assim definidos na expetativa de serem descobertos, julgados com base em prova convincente e de serem impostos castigos a quem por eles for condenado em sentença. É a sociedade bem-comportada – pelo menos enquanto alguns dos seus membros não transgredirem, tornando-se ovelhas tresmalhadas do bom rebanho – que exige a penitência dos que prestam contas à justiça por se terem tresmalhado. O grupo espera deles um arrependimento convincente. Enquanto o arrependimento não medra, comina-se a penitência: os trabalhos forçados que suprimem temporariamente a liberdade dos que se desviaram dos usos e das regras e precisam ser castigados pela ofensa a um esteio da sociedade.

Mas a palavra “penitência” tem uma carga pesada, evoca o ambiente repressivo que convoca a fidelidade metafísica e a limitação da liberdade individual para não hipotecar a autoridade da divindade. A reprimenda é religiosa: a falta de cumprimento é compensada com o castigo físico, pois a dor sentida pelo penitenciado é como se fosse exportada pelos membros ofendidos da sociedade para quem delinquiu. A penitência é o outsourcing da dor injustamente sentida por efeito de ato alheio; a sua devolução à procedência; o boomerang reparador. Através da penitência do tresmalhado, o resto do grupo ameniza o incómodo.

A penitência vem depois da penitência não autorizada, imposta contra a vontade de quem dela é vítima. É uma vingança. Sempre ouvi dizer que a vingança é uma reação mesquinha, nivelando quem a pratica pelo estalão do condenado à penitência com selo régio. Acabam por não ser diferentes, caçador e presa. Esta beneficia de uma proteção coletiva que as presas no meio selvagem não têm. Mas condenar os caçadores à penitência é fazer recair sobre eles a arma que usaram, contrariando a lógica das leis e dos usos. Uma penitência reage à outra. A segunda é ilegítima; a primeira legitima-se no alfobre da vingança, que nivela os direitos da presa e do caçador.

20.11.25

XXXVI

Beth Gibbons, “Floating on a Moment”, in https://www.youtube.com/watch?v=ldrx0eSqV-E

I’m heading toward

a boundary

that divides us.”

Fracos com os fortes. É o idioma que a humanidade sabe falar. Por mais que diligentes procuradores da igualdade se atirem com as armas da razão contra as desigualdades de variadas estirpes que teimam em desmentir a ética. Se os fortes exacerbam a sua força diante dos fracos, é por puro instinto de sobrevivência; são eles os primeiros a preservar um estatuto de superioridade, que não estão dispostos a partilhar com os fracos. Mas como se entende que os fracos exacerbem as suas fraquezas quando estão perante os fortes?

Em parte, a culpa é do passado. A separação das castas, mesmo que não tenham essa designação formal, é uma herança pesada que chega com o lastro do passado e a determinação dos usos sociais. Não se questionam os mais fortes, nem eles têm de se justificar, e justificar as suas ações, quando somos seus destinatários. Humildemente, obedecemos. Com um respeitoso aceno de cabeça – porque “o respeitinho (...)”. Assim se fortalecem os mais fortes e enfraquece o estatuto dos mais fracos.

Recentemente, a assimetria dos estatutos e a sua permanência têm sido contestadas por alguns que gravitam na órbita dos fracos. Cavalgam no lastro da democracia, e no que ela tem de intrínseco na dissolução das desigualdades persistentes, apostando na insubordinação e no desafio aos mais fortes. Não querem que a desigualdade persista. Se não tiverem vencimento de causa, advertem para o abismo que fere a legitimidade da democracia. O questionamento dos mais fortes é um exercício de força que capacita os mais fracos a saírem da prisão mental à qual foram condenados pela sua fragilidade.

É prematuro saber se a causa dos mais fracos vai triunfar. É preciso perguntar ao futuro, ou esperar pacientemente que ele aconteça. No presente estado das coisas, os fracos ainda são fracos e os fortes ainda são fortes. Alguns fracos continuam a fazer genuflexões quando estão perante os fortes. Estes continuam a desprezar os mais fracos ou a dedicar-lhes uma bondosa indiferença. Alguns fracos manifestam indignação pela desigualdade e motivam-se para serem fortes diante dos fortes. Alguns fortes já perceberam a iniquidade da desigualdade de estatutos e aceitam as aspirações dos mais fracos. Alguns fazem-no por adesão espontânea aos ares da modernidade e outros por calculismo. Enquanto a desigualdade perdurar por apatia dos fracos, é a fraqueza deles que cimenta a força dos mais fortes. Eles são fracos diante dos fortes, como se não bastasse que muitos dos fortes avivem a sua força quando estão perante os mais fracos. 

Quando os fortes são perversamente fortes com os mais fracos, é sinal de uma enfermidade a que se chama hipocrisia. Não se diga o menos quando os fracos são fracos perante os fortes. A teoria ensina que vivemos num sistema que confere às pessoas frágeis as ferramentas para contestar a soberania assimétrica dos fortes. A omissão de muitos em ativar a sua condição também é um sinal de hipocrisia. Há fracos, muitos fracos, que estão resignados à sua (sub)condição.

19.11.25

XXXV

Lankum, “Ghost Town”, in https://www.youtube.com/watch?v=aLLnF4vxaeY

“Hell is around the corner.”

Num fogaréu típico da publicidade – em tudo o que a publicidade é mestra ao convencer os destinatários a serem atores num palco de ilusões –, desfilam os rostos formidavelmente felizes dos apostadores de jogos variados (lotarias, Euromilhões, apostas online em que se aposta tudo e mais alguma coisa, as populares raspadinhas).

Retenho os rostos formidavelmente felizes dos apostadores, o totem de um paradoxo: o plano de negócios das entidades certificadas para a organização destas apostas depende das mãos largas dos apostadores e da lei das probabilidades estatísticas que favorece as primeiras e torna os segundos permeáveis às escassas possibilidades de serem premiados. A menos que os apostadores vivam imersos numa bolha de ignorância e sejam seduzidos pela falácia do enriquecimento por via das apostas em jogos de azar, eles são a carne para canhão que alimenta o plano de negócios das entidades certificadas para uma das várias modalidades de jogo. 

E, mesmo assim, apesar daqueles rostos formidavelmente felizes dos apostadores terem uma elevada probabilidade de corresponder a pessoas que, no deve e haver entre dinheiro apostado e apostas premiadas, se perfilam entre os moradores do défice, os rostos estão formidavelmente felizes no momento do registo da aposta. Poderão contrapor que asfixiar a esperança no futuro é tirânico, um exercício de superioridade moral que os destinatários dispensam. E que, assim sendo, os rostos formidavelmente felizes que estão a trocar a esperança por um futuro materialmente mais desafogado ao investirem numa aposta, estejam formidavelmente felizes porque se não fizessem aquele investimento estavam condenados a vegetar na modicidade própria de quem leveda numa vidinha levemente acima da linha de água.

Também dispenso exercícios de superioridade arremetem perfeitos compassos morais para os outros. Não é este um exercício de pesporrência moral dirigido aos apostadores compulsivos, ou não compulsivos, os tais rostos formidavelmente felizes dos que se viciam em apostas. Os iconoclastas do anticapitalismo têm aqui um campo fértil para se atirarem às campanhas publicitárias que seduzem os apostadores atuais e futuros a elegerem considerações materiais como prioridade. Enriquecer não devia ser a preocupação das pessoas. Seduzi-las com uma promessa incumprível de enriquecimento perpetua o vício comportamental e constitui um autêntico logro, a crer nas muito reduzidas probabilidades estatísticas de serem premiados depois de depositarem uma aposta. 

Por fora desta reprovação da dependência de um materialismo que despersonaliza, os rostos formidavelmente felizes estão felizes mesmo sabendo que a probabilidade de serem premiados é tão formidavelmente ínfima. E aqueles que são casos patológicos de dependência do jogo também continuam a entrar nos estabelecimentos de registo das apostas pendurados num sorriso formidavelmente feliz? Quem gosta de atirar dinheiro ao deus-dará?

Ao menos, há sistemas de apostas que se organizam segundo a lógica do assistencialismo. A maior parte do dinheiro gasto em apostas destina-se a ajudar as pessoas necessitadas. É uma forma de redistribuição de riqueza. De pobres para pobres. Desprezados sejam os que se amotinam contra a extensa rede de apostas e a publicidade que as retrata como um paraíso para os apostadores, com a abundância material ali mesmo, a espreitar desde o abismo.

18.11.25

XXXIV

Robert Wyatt, “At Last I Am Free”, in https://www.youtube.com/watch?v=8MNkvOJtfEM

“Here are the young men, the weight on their shoulders

here are the young men, well where have they been?

We knocked on the doors of Hell’s darker chamber

pushed to the limit, we dragged ourselves in.”

O marxismo ainda existe. A adversativa não tem segundas intenções. Das ideias, de quaisquer que sejam, não se tenha a ousadia de condená-las à extinção. Que não seja fácil ceder à tentação de as considerar datadas. O exercício será sempre precoce e, ele próprio, condenado a um vigoroso desmentido. Nem que os tutores desse desmentido se limitem a exercer a sua liberdade de expressão, por mais que os seus oponentes desprezem essa ideia por a julgarem antiquada. As ideias, nenhuma ideia, podem ser ostracizadas ou desvalorizadas. Pois esse esquecimento pode ser o melhor trunfo que espera a reabilitação das ideias pelo tempo vigente.

O marxismo é sedutor quando o tempo presente exibe manifestações de poder que parecem confirmar o sangue que corre nas veias da luta de classes. O tempo atual parece corresponder a esse quadro. Um governo que se aproxima perigosamente da retórica e das ideias de um partido radical situado à sua direita tenta aprovar uma agenda legislativa de organização do trabalho que, segundo muitos especialistas, determina um retrocesso nos direitos dos trabalhadores. Para os espíritos mais sensíveis, que se exasperam com esse retrocesso civilizacional, justifica-se a mobilização das artes para avivar uma agenda de sentido contrário, a fim de proteger os direitos dos trabalhadores. 

O tempo e as circunstâncias são o palco ideal para peças de teatro politicamente militantes. Brecht é um dramaturgo de eleição para os que convocam das artes as armas necessárias para combater os interesses que se mobilizam contra os direitos da parte mais vulnerável do contrato de trabalho. Por mais que as peças de Brecht sejam datadas e se embebam num contexto que historicamente é distinto dos tempos atuais, para quem defende a sua atualidade as diferenças de contexto não são impeditivas do seu resgate. Os tempos que não correm de feição trazem essas peças de teatro do passado, tornando-as imediatamente atuais.

Quem não seja sensível a estes quadrantes políticos não pode deixar de ficar atento à mobilização incremental das artes para integrarem o combate político, alinhando-se com a agenda das forças políticas e dos interesses específicos que se amotinam contra a agenda laboral que ameaça cortar direitos. Pode ser desempatia com a ministra da tutela, que não compensa a circunstância de ser perita na matéria com a arrogância que destila a cada intervenção pública sobre o assunto. Pode ser um questionamento sobre a legitimidade da modificação das leis, quando a agenda laboral não constava do programa eleitoral. Ou pode ser, mais objetivamente, que algumas das soluções incluídas na agenda laboral sejam excessivas (di-lo alguém que não esconde o seu pendor liberal).

“Santa Joana dos Matadouros” é a peça de Brecht que traz para o presente uma crise e um enredo nela baseado dos anos trinta do século passado. É Brecht a dar um banho de marxismo à audiência. E, apesar dos pesares acima expostos, pese embora uma pessoa medianamente atenta perceba que a comparação de circunstâncias (da peça e da atualidade) não favoreça conclusões senão apressadas e politicamente empenhadas (isto é: sanar uma certa orfandade política, que é a extração do tempo presente, de quem busca alguma redenção na mobilização das artes contra os estertores que se anunciam) – pese embora tudo isso, Brecht é a alma pater de um revivalismo necessário para a reabilitação de uma militância que se oponha à perda de direitos, ao tal retrocesso civilizacional.

Em “Santa Joana dos Matadouros” desfilam os habituais clichés: a ganância dos capitalistas, que não hesitam em sacrificar os mais fracos se esse for o resultado de mais dinheiro amealhado; a intencionalidade dos detentores do capital, que condenam à perda de direitos os que para eles trabalham, forçados a receber um salário mais baixo pelo privilégio da conservação do posto de trabalho. Sem se perceber que a História, e a modernização dos tempos, terão ensinado aos detentores de capital que hostilizar os trabalhadores, condená-los à usura que os torna dependentes e condená-los a receber menos salário por mais horas de trabalho é o contrário do que um detentor do capital consciente pode pretender; se o protótipo simplista de “Santa Joana dos Matadouros” fosse viável, ao promoverem a dependência psicológica e a miséria material, os capitalistas alcançavam o oposto do que querem obter: reduzir o rendimento dos trabalhadores é condená-los a reduzir o consumo. E como a produção não sobrevive se o consumo não sobreviver, menos compreensível é a exportação de Brecht para o século XXI. 

Assistir a peças de teatro ou a outras manifestações de artes em que se convoca a renovação da militância contra o capitalismo (“o fascismo é a verdadeira face do capitalismo”, convém evocar a ilação de Brecht) parece integrar uma (compreensível) estratégia de sobrevivência daqueles sectores políticos que entraram em deriva existencial e que receiam a repetição da História. Estes “tempos medonhos” são o palco fértil para manifestações de arte politicamente empenhadas. O recurso a fragmentos emblemáticos das artes para reavivar e reativar militâncias em retração, não pode justificar que se atropele o pensamento e se aceite tudo na urgência de estender a analogia entre diferentes camadas do tempo e diferentes circunstâncias. Apanhar boleia de um Brecht datado deixa entender que quem a apanha se assemelha a alguém que se sente puído pelo curso da atualidade e precisa de um banho, um banho de marxismo, para renovar as forças. 

Para os demais, que têm interesse em participar da liturgia coletiva — um interesse talvez arqueológico —, o palco é uma lição inteira. Sobretudo, de como o recurso às artes, pedindo emprestado ao passado peças de teatro que são libertadas da poeira que sobre elas se deitava, não passa de um recurso estilístico.

17.11.25

XXXIII

Big Thief, “Grandmother” (live at The Tonight Show Starring Jimmy Fallon), in https://www.youtube.com/watch?v=6RhWupp8fBE

“I hear her voice/calling my name (...)”

No quarto dos arrumos, onde os desastrados são desterrados, tudo é à prova de bala. Os desastrados são capazes de provocar um sismo de proporções bíblicas só por um “leve bater de asas” (como o da borboleta que, depois, vem a causar tufões inomináveis).

Os desastrados são os poliglotas dos cataclismos pessoais. Deles se pode esperar desastres – ou não fossem conhecidos por desastrados – tanta a proficiência para causar acidentes em cadeia a partir de um gesto inicial e simples. É aquele que transporta a bandeja com o seu almoço e o da amiga (ainda há cavalheiros como no império britânico) e, distraído com a companhia e com o privilégio que lhe foi dado de ser tão generoso para a amiga, tropeça no pé distraidamente mal colocado de um colega de trabalho e se estatela no chão, mergulhado na bolonhesa que encimava o esparguete. 

Ou o estudante finalista que, em festim noturno depois do jantar de gala, verte acidentalmente um whisky na gravata do professor que, já sabia, faria o exame derradeiro antes de concluir a licenciatura, e tudo porque quis oferecer a hora do momento ao lente e não reparou que, para inclinar o relógio, o mesmo gesto se contagiava ao copo que tinha sido reabastecido uns instantes antes.

Ou o aspirante à promoção a um cargo mais importante na empresa que quis impressionar o conselho de administração e, chamado a pronunciar-se sobre um assunto de sua lavra, querendo discursar com a erudição que não lhe assistia, trouxe para o inventário da fala um amontoado de palavras gongóricas e duas ou três piruetas gramaticais (a terceira ficou por consensualizar entre os presentes), deixando os presentes boquiabertos pela ininteligibilidade do discurso. 

Ou o noivo que ficou tão nervoso, tão nervoso, enquanto aguentava a tradicional demora da noiva, que começou a ficar com a bexiga apertada, e cada vez mais, e mais ainda, e ele não se podia ausentar porque a sogra estava sempre a advertir que se a noiva chegasse ao altar e ele estivesse temporariamente ausente a boda ficava sob os auspícios do azar, não tendo, ato contínuo, o noivo aguentado a traição da bexiga urinando abundantemente pelas calças abaixo à vista de todos os convidados.

Ou aquele político apanhado com a boca na mentira, não lhe valendo nem os melhores (ou piores, dependendo da perspetiva) dotes para convencer os demais que não houvera dito o que estava a ser entendido como a prova material de uma mentira, pois as palavras tinham sido retiradas do contexto, “truncadas”, disse ele em sua defesa, para continuar a meter as mãos pelos pés e a cavar ainda mais fundo a cova onde ele e a sua amiga, a mentira, estavam quase a ser sepultados.

Estes desastrados, e outros que não vêm ao caso, pediram proteção de si mesmos à justiça das almas. Queriam ser salvos da elevada propensão para asnear. Não se importavam do desterro para o quarto dos arrumos. Podia ser que aprendessem a arrumar-se. 

14.11.25

XXXII

Human Natures, “The Meaning Song”, in https://www.youtube.com/watch?v=o9F7zcWjsys

“They ought to practice what they preach/those good people”.

Açambarcava os sonhos antes que perdessem validade. Mas, às vezes, os sonhos adulteram-se, perdidos entre as nuvens baças que os ensombrecem. Não dizia adeus às dúvidas. Os que apostavam nos caudais excessivos para calar o medo não percebiam nada. Esses não tinham lugar nos sonhos sem pressentimento. Vagavam, os seus lugares, à medida que eram despojados.

Um dia, prometeu que não haveria vozes malsãs a tocar às campainhas da consciência. Jurou que só deixaria entrar as vozes melódicas que entoassem poemas vividos, como se fossem astronautas mergulhados nas profundezas dos mares. Os embaraços deixariam de correr por sua conta. Firmando os pés no solo alicerce, olharia por cima do tempo até virar a página do horizonte.

Os templos corriam atrás da tela. Eram sombras intuídas, escondidas dos paramentos que disfarçavam condições meãs. As pessoas não reconheciam os templos. Passavam por fora, como se eles não constassem do mapa e todos os idiomas fossem suprimidos pelas vozes magras. Não é inverno duas vezes seguidas – alguém prefaciava o pior La Palisse que se podia conhecer. E, todavia, o inverno sabia que depois dele não vem outro igual. Para os detratores do inverno, esse era um lugar-comum que sossegava os sonos desalmados.

Se medisse as bissetrizes das almas, onde encontraria o equinócio?

O luar embatia na noite compungida. Prometiam um luar singular, já não se lembrava do adjetivo arrematado para essa singularidade. Os deuses conspiraram: encomendaram uma densa camada de nuvens para impedir tamanho luar. Salvaram-se os que vinham de avião, sentados do lado esquerdo. Voando acima do teto de nuvens, estavam quase a par da lua proveitosa. Quando aterraram, já se tinham esquecido do luar singular. A convocatória do chão desmonta os sonhos angariados na sua efémera criação. Depois da noite, podiam ter sido titulares de uma diferença invejável. Preferiram substituir a poesia pelas representações frias do mundo conhecido.

Os propedeutas dos sonhos não sabiam do paradeiro das luas diferentes e da inesperada aurora boreal que invadira latitudes desconhecidas. Mas os deuses conspiraram outra vez: em vez de falarem dos fenómenos celestes, encomendaram uma tempestade que desviou as atenções. Os deuses tinham medo que as pessoas degenerassem para a poesia, que é meio caminho andado para serem desautorizados. Os olhos insondáveis retiraram-se do protetorado dos deuses. Agora, liam poesia na manhã inaugural. Disseram às palavras que estavam emancipadas da órbita dos deuses. As palavras podiam falar em nome dos sonhos. Podiam dizer aos sonhos aquilo que os sonhos quisessem ser.

13.11.25

XXXI

Cocteau Twins, “Aikea-Guinea”, in https://www.youtube.com/watch?v=Du7nKnKhhmU

“I see trees of green”.

Éramos crianças e subíamos às árvores, que não detinham as brincadeiras. Se déssemos ouvidos a agentes conspiradores, seríamos convencidos de que subir às árvores era jogar com o pressentimento do poder: na altura, era no alto que nos sentíamos bem, mais tarde seríamos ocupantes de lugares cimeiros. O tempo encarregou-se de desmentir a profecia dos agentes conspiradores. Nenhum de nós tomou o poder como ópio.

Queríamos subir às árvores porque gostávamos de labirintos. Do desafio de um labirinto. Os ramos que se desmultiplicavam eram como sucessivos corredores que se abriam do nada por dentro de um labirinto. Não nos amedrontavam as alturas; naquela altura, não tínhamos vertigens. Quando fomos mais velhos, passámos a tropeçar em vertigens quando abismos vários se semeavam nos nossos caminhos. Mas naquela altura, não. Medíamos os passos à medida que trepávamos às árvores. Queríamos sentir o equilíbrio precário. Para saber onde parar.

As figueiras eram as árvores prediletas. Sobretudo se fosse época de colher os figos. Depois tínhamos bebedeiras de figos, comendo-os até nos enfartarmos. Sentíamo-nos como se fôssemos suseranos de um domínio qualquer quando nos abarbatávamos com os figos e, sentados sob a copa da figueira, dirigíamos o olhar para a figueira que ainda não tinha sido despojada da colheita de figos que o ano proporcionara. Éramos suseranos daquela figueira e nós é que sabíamos do destino dos figos.

Era por esse poder que nos inebriávamos. O poder mundano, que começava e terminava na exiguidade dos nossos eus. Até porque, na altura, sobretudo quando subíamos à altura das árvores, não sabíamos o que era o poder a que os outros chamavam poder. 

Gostávamos da sensação de poder interior e da sua efemeridade. Sabíamos que ela se extinguia quando terminávamos a descida da árvore e os pés se firmavam no chão sólido. E sabíamos que a efemeridade do poder, enquanto estávamos empoleirados nas árvores, era como habitar uma fuga. Só não sabíamos do que fugíamos. Ou talvez fugíssemos por conta dos sobressaltos intrínsecos à idade adulta. Sem sabermos, fugíamos desses sobressaltos. Pois, embora deles nos exilássemos antes de eles terem lugar, sabemos agora que era como se estivéssemos no tirocínio necessário para acautelarmos os seus efeitos por vezes devastadores. Esta foi uma profecia que se cumpriu. Hoje estamos todos inteiros. Talvez porque soubemos contrariar a sedução do poder.

Hoje continuamos (adivinho) a subir às pessoais árvores imaginárias. A fazer a vontade aos sonhos que se entronizam na própria vontade. Saltando de ramo em ramo, as mãos agarrando-se a outros ramos, enquanto os pés se deslocam num movimento sublime à procura de todos os sonhos, sem ter de saber se vão encontrar realização.

Hoje, lamentamos que as crianças nossas sucessoras sejam proibidas de experimentar o equilíbrio precário de uma árvore. Não é de estranhar que cresçam desabilitadas para os contratempos da idade adulta. Até porque hoje os contratempos são de uma estatura maior.

12.11.25

XXX

The The, “Unrequited”, in https://www.youtube.com/watch?v=Igdw2NZnTCI

“I am the nightmare of your progressiveness”.

Não precisava de pontes para chegar ao despesismo da alma. Vozes guturais subiam a pulso pelas veias, atropelavam os embaraços estiolados. Não podia permitir o esbulho constante da alma. As dores corriam por sua conta. O belo efémero instalava-se nos interstícios, como se precisasse de colonizar a feiura irremediável. 

As mesmas vozes guturais abrandavam quando sentiam a pele nas imediações. Traziam-lhe um módico de profundidade: a pele só acautelava as coisas frívolas que as vidas não podem deixar de apascentar, mas precisava de outras fundações. O espírito inquisidor não dava tréguas ao sono metafórico; era contra as distrações, muitas vezes fatais, em que se enredavam os olhos desatentos. As pessoas diziam que os males estão feitos e que ninguém consegue, à sua conta e risco, mudar os planos das coisas embalsamadas. As pessoas estavam erradas. A capitulação é a pior conspiração que se mobiliza contra elas. Se não supõem os malefícios da apatia, deviam desafiar o comodismo da inércia, subindo a um palco onde se entretece o contrafactual.

Tudo começava com uma intencional sublevação interior. Uma sucessão de perguntas, umas incómodas e outras apenas para ajaezar o espírito inquisitivo – ou para desatar a controvérsia, que os espíritos andam muito aquietados e essa limitação do espaço corrompe a vontade de cada pessoa. As vozes guturais transformavam-se num clamor que troava e fazia abalar até os alicerces mais bem enraizados. Não podia pactuar com o fingimento cabal das coisas, com a rotina que substituía a criatividade, pois a imaginação pode ser terçada em desfavor dos mandantes que povoam o lugar com uma dócil passividade mesmo a preceito. Ah, se todos fôssemos obedientes, não era preciso organizar eleições.

Os provérbios tiravam partido da dependência dos hábitos para se mobilizarem a favor dos que temiam a vontade sem freios das pessoas. Os provérbios prolongam as algemas mentais que muitos colocam a si mesmos só para não terem de pensar pelas suas cabeças. São terroristas de si mesmos, indignos de transportar a bagagem de direitos que parece ter sido inventada para domesticar a rebeldia do pensamento sem fronteiras. Ficam à míngua de um lugar visível. São eles que devolvem largas fatias da vontade não exercida; por prescrição ou por desinteresse, fogem de um lugar próprio na assembleia onde todos coabitam. 

Estes lugares são estertores do que podiam ser se as pessoas não se intimidassem com a promessa de serem vozes que se fazem ouvir. São devolvidas à procedência, no lugar escondido onde se perfilam, tão pequeninas.

11.11.25

XXIX

Rosalía ft. Björk and Yves Tumor, “Berghain”, in https://www.youtube.com/watch?v=htQBS2Ikz6c

“Let’s go out for a walk”.

Ao domingo, as pessoas gostam de sair de casa. Fazem o (convencionado) “passeio dos tristes”. Metem-se nos carros e encetam as suas procissões vagarosas pelas estradas frequentadas por outras pessoas que também vão no seu “passeio dos tristes”. Convergem nos mesmos locais, não por acaso atirados para as convenções dos pontos turísticos da região. Parece que todos fogem das casas que são, contudo, pouco frequentadas durante a semana.

Mesmo que esteja um tempo outonal, quase a escorregar para a invernia que não tarda, famílias inteiras saem de casa e encaixam-se no espaço exíguo dos carros. Este é o passatempo da tarde inteira. Serão menos a visitar a gelataria quando os filhos entrarem na adolescência e deixarem de ter paciência para aturar os pais nas procissões familiares escrupulosamente dominicais. 

Ainda ouvem o relato enquanto passeiam o seu vagar nas estradas regionais. Quando os filhos forem adolescentes, deixarão de frequentar a gelataria – assim como assim, só iam à gelataria porque os petizes queriam lanchar as iguarias americanas que só aquela gelataria confeciona. A meio da tarde, o pai e a mãe dos adolescentes rebeldes estacionam diante do mar, num dos lugares que ainda estiver vago, e o marido adormece apesar da voz esganiçada do narrador do jogo de futebol que vai transformando um jogo maçador num acontecimento que entusiasma os ouvintes.

(As rádios locais têm de sobreviver.)

De regresso a casa, a consorte vai remoendo em antecipação a semana que a espera. As lides da casa: a escolha da ementa para o jantar, a roupa dos filhos, a roupa do marido (que ele não tem jeito para se apessoar), as limpezas da casa; não pode deixar os créditos por mãos alheias, e a sogra, quando vai de visita lá a casa, está constantemente de atalaia à espera do mínimo deslize na limpeza da casa, na roupa do marido e dos “meninos”, na qualidade do almoço de todos os sábados. Ainda é domingo e já está a desejar que volte a ser domingo outra vez. O regresso a casa torna o estertor do domingo uma tortura. Já prometeu que deixaria de antecipar os dias da semana, para não trair a serventia do domingo. Ainda não conseguiu.

As tardes de domingo são um hino ao silêncio. Têm poucos assuntos para falar. Os assuntos da sua preferência são indiferentes para ela. Nunca gostou de futebol e agora ainda menos. Os assuntos que correspondem a uma vaga atenção dela são “coisas de mulheres”, como ele descreve em tom jocoso. Ela já não se lembra há quanto tempo ele a beijou na boca ao acordar. Ele envelheceu antes do tempo, à boleia de todos os amigos que também envelheceram antes do tempo e se dedicam a coisas frívolas que, todavia, também preenchem as vidas.

Ao domingo, têm de continuar a sair de casa e a queimar dinheiro no gasóleo queimado durante os quilómetros do “passeio dos tristes”. A solidão silenciosa da casa de morada de família é ainda mais triste.

10.11.25

XXVIII

Gorillaz ft. Idles, “The God of Lying”, in https://www.youtube.com/watch?v=kJChWUcesJ4  

“Hope should be a controlled substance.”

Começa pela conclusão. Não te importes com o índice. As pessoas são crescidas, conseguem encontrar um caminho sem precisarem de um mapa. Para que serve a fala? Elas que perguntem onde se deita o sol e cuidem de arrematar ao corpo um leito onde possam emoldurar os sonhos.

Alguém dizia: “a esperança devia ser privatizada”. Nós não sabíamos que tinha sido nacionalizada. Depois de pensarmos mais demoradamente, percebemos que ela fora expropriada pelos poderes públicos de cada vez que ofereceram provas da sua incapacidade. Por cada vez que frustraram as esperanças das pessoas, estavam a expropriar a esperança. Como se já não fosse grave, dessa expropriação não resultaram ganhos de causa para a entidade que dela tirou partido. A esperança expropriada dissipou-se. Todos ficaram a perder.

Mais adiante, numa página avulsa, alguém protestou que não interessa privatizar a esperança porque não é seguro que seja um processo irreversível. É da natureza das coisas que as pessoas que sobem ao poder se inebriem com ele, ostentam-no numa distração da finalidade do seu exercício. Os mandantes convertem-se em adormecidos déspotas (ou levantam-se do disfarce de déspotas que souberam diligentemente esconder). Acontece nas tiranias e nas democracias. O poder adultera quem o ostenta. A esperança que tiver sido resgatada a quem sobre ela cometeu usura em nome próprio, chega ao seu titular enodoada, como se tivesse perdido qualidades durante o tempo em que gravitou fora da sua órbita legítima.

Insistiu: “a esperança tem de ser privatizada”. Mesmo que, depois de privatizada, seja esbulhada outra vez, por vontade do próprio ou por ações que lhe são exteriores. A condenação da infâmia que é tutelar da vontade dos outros reduz a esperança de uma invetiva. Ninguém consegue atravessar um sono incólume. Os sonhos tempestuosos, onde medram as tempestades que levantam árvores e telhados, colonizam o sono. A esperança em resgatar a esperança perde o seu hábil mediador. Foi nesta altura que alguém com o olhar sombrio usou a cartada da lucidez e escusou-se de hastear a esperança. Disse: 

- Sobre o meu olhar adeja um céu plúmbeo; não consigo desfazer as nuvens pesadas que cospem chumbo para as consciências desprotegidas. É melhor que se deixe de falar na privatização da esperança. Não queiramos amarrar as mãos das pessoas com uma ilusão que depressa se estilhaça com um laivo de tempestade ateado por outros.

As pessoas não podiam deitar-se na esperança, mesmo que ela fosse resgatada aos poderes que a tinham expropriado. Deviam deixar de pensar na esperança. 

7.11.25

XXVII

TV on the Radio, “Happy Idiot” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=NJMd-BjYZRU

“I understand the futility of our antics.”

As areias movediças entram nas palavras que por sua vez entram na boca sem pedir licença. Amontoam-se as vozes estrénuas que mexem nas súplicas alistadas. A folhagem das árvores desprende-se dos ramos, o outono prova a sua existência. É este ar amarelecido, o contraste gritante com a epístola estival que tanto inebria a maioria, que se empresta como uma doença que atravessa os dias.

Uma senhora da limpeza protesta contra a chuva. Admite, em exercício de generosidade, que a chuva é necessária; corrige o truísmo, rematando: “a chuva devia cair toda durante a noite. Só durante a noite.” Os truísmos andam aos pares.

Os rios engrossaram. À medida dos lunáticos que continuam em estado de negação a propósito das doenças do clima. Hão de estar de dedo em riste, carregados da sua ufana e ao mesmo tempo leviana razão, à boleia dos rios caudalosos para negarem o que a ciência insiste em provar. Talvez a ciência seja apenas uma conspiração e os credos gratuitamente bolçados constituam o sucedâneo da boa ciência. As entroses da ciência são a janela aberta ao totalitarismo de uma razão que, de outro modo, estava condenada a esvair-se como o nevoeiro gasto da desrazão.

A outra senhora da limpeza é menos contemplativa: a chuva é um aborrecimento que nos ensopa, muito provavelmente o pressentimento de um estado gripal que não demora a chegar. Se contraponho que a chuva é necessária para irrigar os campos, encher as albufeiras e assim termos energia mais limpa e barata, avivar as cores que a natureza sempre conheceu, e porque a chuva é a rima natural desde que o outono foi estabelecido no calendário das estações, desinteressa-se da conversa e, com um leve meneio de mão, recusa dar parte de vencida: “a chuva é mesmo um grande aborrecimento.” Pode ser que, nesta época de vertiginosos avanços da ciência, alguém invente a chuva que não molha (tal como já se fabrica neve nas estâncias de esqui, quando a neve rareia).

Estas são conversas nos interstícios de outra coisa qualquer. Sempre terá sido assim – desenganem-se os que acreditam que as conversas entre a gente comum são apoderadas pela filosofia, ou por outras ciências que exigem alguma erudição. As pessoas comuns falam sobre assuntos comuns. O tempo atmosférico, que as consome mais do que o tempo-tempo (por erro de julgamento), é um assunto que ocupa espaço na agenda de todos os dias. 

Há quem diga que é outra prova da entrega à frivolidade das pessoas comuns. Ainda não fui confrontado com uma definição convincente de “pessoas comuns”. Descontadas as diferenças dos grupos sanguíneos, o sangue é igual num analfabeto e num erudito. Frívolos são os juízos sobre a frivolidade dos outros. 

6.11.25

XXVI

Alice in Chains, “Rooster”, in https://www.youtube.com/watch?v=uAE6Il6OTcs

“Catch me if you can.”

“Bom dia” (uma voz) – “ou nem por isso” (a outra voz, a arrastada voz de quem o dia não teve um despontar promissor). Há noites madrastas. E noites formidáveis, com um sono feito numa pernada só, ou com sonhos invasivos que são tolerados pela sua generosidade. Os espíritos compõem-se para o resto do dia à mercê da safra em que veio vestida a noite. É injusto para o dia, que não tem culpa de como as noites se congeminam.

Na coreografia do “bom dia”-“ou nem por isso” há uma dissonância. Quem diz “bom dia”, nem que seja por um imperativo de convivência social, tem de estar preparado para não ouvir uma voz a irradiar tanto otimismo quando o dia sorteia os primeiros minutos do seu inventário. A coreografia até pode nem ser tão dissonante: se quem disser "bom dia” não tiver razões para se sentir a começar bem o dia, mas tiver um compromisso com os usos e desejar que os dias dos outros sejam bons dias (ou dias bons). Caso em que se afigura que uma das vozes disfarça o mal-estar, ou tem a delicadeza de não exportar o mal-estar para quem aparece no caminho e a quem dedica um dia bom, ao contrário do seu dia que não começou na melhor feição. Ao endossar a jura exterior de um dia bom, é como se, ao mesmo tempo, entoasse em silêncio uma prece a suplicar para si o dia bom que deseja aos outros. 

Mas os votos de um dia bom podem ser genuínos, aquela voz pode ter motivos vários para agradecer ao dia por ter nascido, mesmo se veio com a carantonha de um dia outonalmente tempestuoso. À voz que diz, em resposta, “ou nem por isso”, é como se lhe estivesse a dizer, em jeito de repto, “catch me if you can”: faz um esforço para teres um dia bom, à semelhança do bom dia que amanheceu para mim. 

Pode ser um desafio insuperável. Intencionalmente ou não, por a vontade que tem de ser mobilizada para transformar um dia “nem por isso” bom num bom dia estar fora do perímetro da pessoa. Ou pode ela não querer que aquele dia seja generoso e tenha prometido levá-lo pela trela da penosidade. Às vezes, temos de coabitar com um dia mau para apreciar melhor os dias bons, que podem ser o sol metafórico que se alista num dia outonalmente tempestuoso.

Aos resistentes, àqueles que não podem ou não querem corresponder ao desejo formulado pela voz socialmente competente, e teimam em deixar-se levar por um dia misantropo, a voz do “bom dia” dirá, em surdina, “catch me, if you can´t”. Uma provocação de boa colheita desperta os espíritos não hibernados para as demandas que valem a pena tirocinar. 

5.11.25

XXV

The Breeders, “Invisible Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=RpZH8tFcJmU

“Dog is life.”

Os tratos maus a animais de companhia provocam uma repulsa violenta. Violenta no sentido de ser difícil evitar uma súbita vontade de exercer violência contra os que maltratam os animais de companhia. Porque há uns arautos da humanidade (assim fazem de si o juízo) que peticionam a favor do direito exclusivo de as pessoas ostentarem à lapela a distinção de direitos e deveres que deve ser vedada aos demais animais. Estes são falsos humanistas: não passam de etnocêntricos recauchutados que se ensimesmam na condição superior em que se autoconstituem, deixando o nada para os demais animais. Na lógica dos juristas novecentistas (os que aí viveram ou os que viveram mais tarde, agarrados a esse espartilho epocal), os animais não são assunto de conversa; não passam do domínio das coisas.

Sendo coisas, têm os mesmos direitos e assiste-lhes a mesma dignidade de um abat-jour, um passe-partout, de um degrau de uma escada (ou da escada inteira), ou de um cinzeiro até repleto de cinzas. Não se incomodam (ia a escrever: “não se comovem”, mas fui a tempo de fazer marcha atrás) com agressões a animais, sobretudo àqueles que, por alguma razão, os mesmos lugares-comuns de onde projetam a sua existência convencionaram chamar animais de companhia. Talvez se esforcem por disfarçar uma adesão calculista às leis modernas que qualificam como crime o abandono, os maus-tratos, a carnificina que o é mesmo quando um só destes animais é sacrificado. Outros, seguros da sua intrínseca boçalidade, dizem, enquanto arreganham a taxa de Sisífio, que às coisas não-assistem-direitos-e-ponto-final. 

Em alguns destes abjetos opositores da causa animal insinua-se uma reação contra o movimento contrário que exagera na afeição aos animais de companhia e que, na maneira de ver dos críticos, prefere direcionar os afetos aos animais em vez das pessoas. Esta é uma peleja inútil; nunca se saberá o que esteve na origem, se a boçalidade dos etnocêntricos, se a ingenuidade mal disfarçada dos novos emissários da causa animal. 

Por alguns momentos, apetece acreditar na reencarnação para encomendar os vetustos militantes do etnocentrismo à condição de animal de companhia na sua próxima reencarnação. Ou imaginá-los, num exercício criativo, a recuarem uns séculos em forma de holograma só para se sentirem atirados às feras num circo romano. Mas, como não creio no poder heurístico da vingança, limito-me a pôr as barbas de molho e a assistir, desde um camarote privilegiado, à estultícia arrogante (ou à arrogância estulta) dos boçais militantes das botas cardadas que qualificam a superioridade antropológica da espécie de que são desembaixadores. 

4.11.25

XXIV

Deftones, “Risk”, in https://www.youtube.com/watch?v=ifN91YvHj7g

"Power, corruption, and lies"

Somos os procuradores de uma colossal mentira. Abrimos um palimpsesto de mentiras, umas dentro das outras, outras desdobrando-se a partir de mentiras prévias, outras ainda como consequências, intencionais ou não, de mentiras anteriores. E há mentiras que se contam com a lisura da verdade, as mentiras maiores que são aquelas que, de tão colossalmente mentirosas, os seus autores e intérpretes dão por assente tratar-se da versão mais recente da verdade. Há os que mentem por vício de raciocínio. Os que tiram partido de mentiras alheias para se tornarem autores de novas mentiras. 

E depois há os piores mentirosos: os que são capazes de se sentar num trono feito de mentiras por desprezarem a vida dos outros, não hesitando em ceifar vidas se forem um obstáculo aos seus objetivos. Líderes de países intrinsecamente beligerantes; comandantes de exércitos; criminosos que só conseguem vingar se, em derradeira instância, forem sacrificadas vidas; homicidas da mais variada estirpe.

Quem é capaz de tirar uma vida é o pior dos mentirosos. Não é preciso alinhar por humanismos líricos: a vida humana devia estar no topo das prioridades de cada pessoa. Respeitar as vidas dos outros e a dignidade que lhes assiste é um princípio pedagógico de autorrespeito. Só quem mente ao respeito a si mesmo consegue sacrificar uma vida. A fogueira em que ardem os que assim mentem não chega a pesar sobre a consciência. Mentem à consciência.

Ouvir líderes políticos com elevadas responsabilidades mundiais explicar, com a destreza de um pedagogo, para que serve o arsenal e que poder mortífero têm as armas que dele fazem parte é testemunhar uma epopeia cinicamente mentirosa. Essas são armas que podem destruir o mundo, extinguir, ou colocar à beira da extinção, a humanidade. Os peritos que estudam os estados de alma do mundo e dos seus líderes asseguram, com a mesma segurança mentirosa de quem acredita nesses líderes, que esta exortação das armas é bluff; não passa de um exercício de ostentação de força para dissuadir inimigos e adversários. 

Quando têm a intenção de amedrontar os outros com a musculatura do seu braço, estão a intimidar. De uma maneira ou de outra, estão a recorrer à mentira. Ou mentem por ameaçarem recorrer à força, quando o futuro vem mostrar que não foi o caso; ou mentem por forçarem os outros a alterar o seu comportamento, por temor ou ao reagirem na mesma moeda, o que agrava o estado geral de mitomania que toma de assalto o mundo quase inteiro.

O que nos salva é que existem ilhas, ilhas cada vez mais recônditas, que recusam este estado geral de mentira. Estão em vias de extinção. As mentiras contagiam-se. Por defeito de impunidade, que motiva a transferência de mais gente para a trincheira onde se mobiliza a mentira sistemática. Essas ilhas, autênticos oásis de desmentira, são cada vez mais a imagem falsamente propagada de espaços de mentira. Não estão a salvo da pandemia da mentira e, cercadas por mentiras por todos os lados, estão a ceder ao chamamento da mentira. 

Quando a mentira se banaliza e estende os seus tentáculos, transfigura-se. Com o vagar das grandes transformações, a mentira deixa cair a máscara e, de repente, estabelece-se como o seu contrário. Os que mentem já sabem que não têm nada a perder: contracenam com outros mitómanos. 

3.11.25

XXIII

The Stranglers, “Always the Sun”, in https://www.youtube.com/watch?v=cYQTL-ws6p4

“Easier said than done”.

Estava de rastos. Os pastores faziam de conta, ali depostos sem rebanho para comandar. O sol escondia-se com medo dos ativistas do clima; temia que o fossem sabotar. Ainda bem que não estava de chuva: se estivesse, ao andarem de rastos iam ficar todos enlameados. Desatributo de que todos fogem, por causa da mácula enxertada na lama.

Ouvia-se dizer que os bloqueios interiores eram passageiros e só aconteciam porque as pessoas não se esforçavam para bloquear os bloqueios. Um guru das almas (mas só daquelas que são exteriores): “tens de trazer à superfície a força telúrica que está escondida em ti.” Ato contínuo, ia consumir as mágoas que tinha de disfarçar para não comprometer o disfarce de guru das almas. Um dia, foi apanhado a chorar copiosamente. Tentou emendar a mão: acabara de sair de casa, onde estivera a preparar um refogado, e a cebola era arisca. 

O pobre guru tinha perdido muita clientela. Aprenderam a crescer e não precisavam de alguém para os encaminhar devidamente. Mas a principal razão para se divorciarem do guru é que se cansaram de ouvi-lo dizer, sem a menor convicção: “tens força dentro de ti, usa-a a teu favor.” Ai de algum seguidor que contrapusesse: “é mais fácil dizer do que fazer”; ao guru pouco faltava para trepar paredes, tal o estado iracundo – mal ficavam os seguidores que, ao dizerem tamanha tontice, desperdiçavam todos os ensinamentos que já tinham sido pagos ao curador das almas.

Preferiam estar acocorados no chão, sentir a textura pedregosa que não era convidativa ao repouso; preferiam aprender a lidar com as dores interiores, em vez de projetá-las no guru que generosamente se oferecia para aplacar as angústias. Cresceram, mesmo aqueles que já tinham idade biológica para ter crescido há algum tempo. O passa-a-palavra cuidou da posta restante. Outros trapaceiros desencartados perderam clientela e tiveram de mudar de negócio. Agora, a gastronomia fina estava na moda. Com meia dúzia de aconselhamentos, o tirocínio numa escola turbo-comprimida e conhecer as pessoas certas nos lugares certos, podiam ser os chefes do momento. Assim como assim, as pessoas alimentam-se de comida, não do acompanhamento que as ajuda a tratar dos males interiores. 

As pessoas anónimas, as que nunca demandam este protagonismo e não ambicionam constar das primeiras páginas das revistas rosadas, ainda deram algum crédito aos chefes de cozinha desviados à charlatanice. Foi sol de pouca dura: os cozinhados só eram imodestamente originais. Oxalá fossem sujeitos a uma sindicância mais apertada. Concluir-se-ia que não tem préstimo mensurável uma pessoa fazer-se passar por quem não é.