The Cure, “Secrets” (live from Troxy 2024), in https://www.youtube.com/watch?v=dqG3EqAz4OA
“I saw the crescent
you saw the whole of the moon.”
Estavam todos ofendidos, a sensibilidade a irromper à flor da pele: “que golpe de teatro”, exclamavam, com a exclamação de quem emprestava cor ao ultraje de que se consideravam vítimas. Podia lá ser, tamanha a usura dos que subiram a cena e ensaiaram um golpe que não era de Estado, era apenas um golpe de teatro. Não podiam tolerar a infâmia: no embrulho estava escrito, com todas as letras, “golpe de Estado”. Não se pode aceitar uma farsa tão ingenuamente montada. O golpe, mesmo que fosse profundo, era só de teatro. Como aqueles golpes que esventram as castanhas antes de passarem pelo fogareiro, colorindo o outono com um dos seus sabores preferidos.
Quando prometem um golpe de Estado, não podemos ficar contentes com um golpe de teatro. Nisto de golpes, tirando os das artes marciais, que respondem a outra escala, existe uma hierarquia. Como é de mau tom para os dias que correm, a haver golpe, que haja sangue derramado. Quando uma sublevação termina em golpe de Estado, irmãos combatem irmãos, uns para depor os outros. Se tiverem de vencer o pleito ou defender-se dos insubordinados vertendo sangue, que esse sangue seja dos que se alojam na trincheira oposta. O estado de ânimo exacerbado não tolera bandeiras brancas esbracejadas numa derradeira tentativa de evitar o derramamento de sangue. A diplomacia faz-se letra morta.
Já um golpe de teatro é um golpezinho, um golpe frustre. Não é suficiente para cozer a pele com alguns pontos. Um golpe de teatro é superficial, não causa grandes dores a quem dele for vítima. Os que têm causas rebeldes e não afastam a contingência da beligerância protestam contra os golpes de Estado que se resumiram a meros golpes de teatro. Estão errados. Porque um golpe de teatro tem a dignidade das artes e não é obrigado à destemperança do sangue vertido pelos que vierem a ser suas vítimas. Pode ser um golpe, mas, sendo de teatro, vale muito mais do que mil armas depostas por vergonha dos que se exercitam a guerrear sistemas políticos decadentes ou como vigilantes de outras causas avulsas que ganharam o lastro do exagero.
Se um golpe de teatro é a despromoção de um golpe de Estado, entretanto abortado, que mereça todos os aplausos que puderem ser arregimentados. Entre um golpe que fica na superfície da pele e outro que vai ao fundo da carne, ensanguentando o chão com a cor da vergonha que não colhe redenção, que venha um milhão de golpes de teatro.