4.11.25

XXIV

Deftones, “Risk”, in https://www.youtube.com/watch?v=ifN91YvHj7g

"Power, corruption, and lies"

Somos os procuradores de uma colossal mentira. Abrimos um palimpsesto de mentiras, umas dentro das outras, outras desdobrando-se a partir de mentiras prévias, outras ainda como consequências, intencionais ou não, de mentiras anteriores. E há mentiras que se contam com a lisura da verdade, as mentiras maiores que são aquelas que, de tão colossalmente mentirosas, os seus autores e intérpretes dão por assente tratar-se da versão mais recente da verdade. Há os que mentem por vício de raciocínio. Os que tiram partido de mentiras alheias para se tornarem autores de novas mentiras. 

E depois há os piores mentirosos: os que são capazes de se sentar num trono feito de mentiras por desprezarem a vida dos outros, não hesitando em ceifar vidas se forem um obstáculo aos seus objetivos. Líderes de países intrinsecamente beligerantes; comandantes de exércitos; criminosos que só conseguem vingar se, em derradeira instância, forem sacrificadas vidas; homicidas da mais variada estirpe.

Quem é capaz de tirar uma vida é o pior dos mentirosos. Não é preciso alinhar por humanismos líricos: a vida humana devia estar no topo das prioridades de cada pessoa. Respeitar as vidas dos outros e a dignidade que lhes assiste é um princípio pedagógico de autorrespeito. Só quem mente ao respeito a si mesmo consegue sacrificar uma vida. A fogueira em que ardem os que assim mentem não chega a pesar sobre a consciência. Mentem à consciência.

Ouvir líderes políticos com elevadas responsabilidades mundiais explicar, com a destreza de um pedagogo, para que serve o arsenal e que poder mortífero têm as armas que dele fazem parte é testemunhar uma epopeia cinicamente mentirosa. Essas são armas que podem destruir o mundo, extinguir, ou colocar à beira da extinção, a humanidade. Os peritos que estudam os estados de alma do mundo e dos seus líderes asseguram, com a mesma segurança mentirosa de quem acredita nesses líderes, que esta exortação das armas é bluff; não passa de um exercício de ostentação de força para dissuadir inimigos e adversários. 

Quando têm a intenção de amedrontar os outros com a musculatura do seu braço, estão a intimidar. De uma maneira ou de outra, estão a recorrer à mentira. Ou mentem por ameaçarem recorrer à força, quando o futuro vem mostrar que não foi o caso; ou mentem por forçarem os outros a alterar o seu comportamento, por temor ou ao reagirem na mesma moeda, o que agrava o estado geral de mitomania que toma de assalto o mundo quase inteiro.

O que nos salva é que existem ilhas, ilhas cada vez mais recônditas, que recusam este estado geral de mentira. Estão em vias de extinção. As mentiras contagiam-se. Por defeito de impunidade, que motiva a transferência de mais gente para a trincheira onde se mobiliza a mentira sistemática. Essas ilhas, autênticos oásis de desmentira, são cada vez mais a imagem falsamente propagada de espaços de mentira. Não estão a salvo da pandemia da mentira e, cercadas por mentiras por todos os lados, estão a ceder ao chamamento da mentira. 

Quando a mentira se banaliza e estende os seus tentáculos, transfigura-se. Com o vagar das grandes transformações, a mentira deixa cair a máscara e, de repente, estabelece-se como o seu contrário. Os que mentem já sabem que não têm nada a perder: contracenam com outros mitómanos. 

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