6.11.25

XXVI

Alice in Chains, “Rooster”, in https://www.youtube.com/watch?v=uAE6Il6OTcs

“Catch me if you can.”

“Bom dia” (uma voz) – “ou nem por isso” (a outra voz, a arrastada voz de quem o dia não teve um despontar promissor). Há noites madrastas. E noites formidáveis, com um sono feito numa pernada só, ou com sonhos invasivos que são tolerados pela sua generosidade. Os espíritos compõem-se para o resto do dia à mercê da safra em que veio vestida a noite. É injusto para o dia, que não tem culpa de como as noites se congeminam.

Na coreografia do “bom dia”-“ou nem por isso” há uma dissonância. Quem diz “bom dia”, nem que seja por um imperativo de convivência social, tem de estar preparado para não ouvir uma voz a irradiar tanto otimismo quando o dia sorteia os primeiros minutos do seu inventário. A coreografia até pode nem ser tão dissonante: se quem disser "bom dia” não tiver razões para se sentir a começar bem o dia, mas tiver um compromisso com os usos e desejar que os dias dos outros sejam bons dias (ou dias bons). Caso em que se afigura que uma das vozes disfarça o mal-estar, ou tem a delicadeza de não exportar o mal-estar para quem aparece no caminho e a quem dedica um dia bom, ao contrário do seu dia que não começou na melhor feição. Ao endossar a jura exterior de um dia bom, é como se, ao mesmo tempo, entoasse em silêncio uma prece a suplicar para si o dia bom que deseja aos outros. 

Mas os votos de um dia bom podem ser genuínos, aquela voz pode ter motivos vários para agradecer ao dia por ter nascido, mesmo se veio com a carantonha de um dia outonalmente tempestuoso. À voz que diz, em resposta, “ou nem por isso”, é como se lhe estivesse a dizer, em jeito de repto, “catch me if you can”: faz um esforço para teres um dia bom, à semelhança do bom dia que amanheceu para mim. 

Pode ser um desafio insuperável. Intencionalmente ou não, por a vontade que tem de ser mobilizada para transformar um dia “nem por isso” bom num bom dia estar fora do perímetro da pessoa. Ou pode ela não querer que aquele dia seja generoso e tenha prometido levá-lo pela trela da penosidade. Às vezes, temos de coabitar com um dia mau para apreciar melhor os dias bons, que podem ser o sol metafórico que se alista num dia outonalmente tempestuoso.

Aos resistentes, àqueles que não podem ou não querem corresponder ao desejo formulado pela voz socialmente competente, e teimam em deixar-se levar por um dia misantropo, a voz do “bom dia” dirá, em surdina, “catch me, if you can´t”. Uma provocação de boa colheita desperta os espíritos não hibernados para as demandas que valem a pena tirocinar. 

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