27.7.10

A cultura dentro de uma concha de cristal


In http://zeroemcomportamento.files.wordpress.com/2009/03/joao_cesar_monteiro.jpg
Pacheco Pereira às vezes consegue pôr-me ao lado das esquerdas – irritação que não fica sem perdão. Se às vezes é de uma lucidez assombrosa, outras cai-lhe o chinelo para um conservadorismo de costumes que testa os limites da paciência. Tem acontecido, ultimamente, com a sua particular hermenêutica de propostas artísticas que, digamos, se perfilam no lado alternativo das artes. É incontestável que todos temos direito ao ridículo. E quando não sabemos decantar gostos pessoais pela cultura, caímos no risco de aparecer como o animal que ficou retratado no imaginário popular como a besta incapaz de olhar um milímetro além das palas que dirigem o olhar apenas em frente.
Há aqui duas perplexidades. Primeira, como pode gente intelectualmente tão acima da média prestar-se a um paradoxal virtuosismo da imbecilidade. É quando aparecem embebidos num arcaísmo de pensamento que os coloca ao lado dos asnos que são incapazes de olhar dois milímetros para o lado. Dói-lhes o relativismo dominante, o relativismo que associam a uma certa esquerda “bem pensante”? As elevadas faculdades intelectuais deviam chegar para emprestar versatilidade às conclusões. É que este mundo não é feito de sincréticas dicotomias. Eu posso frequentar um espectáculo alternativo, daqueles que têm sido vergastados pela chibata implacável de Pacheco Pereira, sem que isso me torne um esquerdista pouco recomendável. Como posso, filosoficamente, adoptar o relativismo sem andar de braço dado com a malta que mistura a ciência com militância no radicalismo esquerdista.
Segunda perplexidade (apenas em jeito de nota de rodapé): estes cronistas que são emblemas de uma certa “direita” envergonham outro tipo de direita. Talvez seja sintomático que Pacheco Pereira, José Manuel Fernandes e Helena Matos tenham frequentado o maoismo na juventude. Trouxeram de lá a assertividade e um certo pensamento totalitário que, o mais que conseguem, é atirar-me pontualmente para a concordância com quem jamais concordaria. Por falta de paciência para aturar imperativos categóricos e visões tacanhas (Helena Matos é, nisto, a catedrática do grupo).
O remoinho da cultura faz-se na confluência das marés contraditórias. A maré contrária é a que certifica a incontestabilidade de uma certa cultura que serve os propósitos de uma certa ideologia. Sem linguagem equívoca: há todo um lumpen cultural que gravita na extrema-esquerda. Aí se nota uma confusão entre cultura e política. Como se a primeira fosse instrumental da segunda. O que rouba a sua autonomia, diria, o seu valor genuíno.
Tenho entre os escritores favoritos alguns que andaram atrelados ao PC (Eugénio de Andrade, Jorge de Sena) e outros que, gozando nas barbas da ortodoxia comunista, sempre se disseram de esquerda e bem de esquerda (Mário de Cesariny, Alexandre O’Neill). A música que ouço é quase toda militante destas bandas. Foi uma das lições que tirei do relativismo: a abertura de horizontes, temperando a rigidez de quadros mentais que fecham o entendimento às fórmulas alternativas oferecidas pelas artes. Não tenho problema nenhum em assistir a uma peça de teatro de Brecht (sempre tão marcadas pela doutrinação ideológica), ou um concerto de Massive Attack (que mais parece terem aterrado do Fórum Social de Porto Alegre), ou encantar-me com um disco de Robert Wyatt (fiel à ortodoxia comunista). Nas artes, valorizo mais a forma do que a mensagem.
Revolve-me uma dúvida metódica, contudo, na polémica causada pela recusa da câmara do Porto em chamar Saramago a uma rua. Tenho alguma simpatia pelo argumento que defende a recusa – o homem não é apenas a sua obra, é também o carrasco das liberdades que desmerece a honraria. Mas, nesse caso, como posso esfregar Ezra Pound na cara dos comunistas?

Sem comentários: