2.7.10

Bilhete postal: Roma


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Para começar pelo óbvio: uma terra que acarinha os “gatos vadios” só pode ser uma terra recomendável. Outro óbvio: não é apenas pela cortesia com os gatos abandonados, pois Roma é recomendável a todos os títulos (ainda que tenha os seus senãos – mas há lugar expurgado de pequenas ou grandes inconveniências?).
Até é possível que já tenha trazido aqui o carinho dispensado pelos romanos aos gatos que tiveram o abandono como fortuna. De cada vez que estou em Roma, não dispenso uma paragem na Piazza Argentina. No centro da praça encontram-se umas ruínas romanas que são a casa oficial de dezenas, talvez centenas de gatos. Deste vez verifiquei, ao ler a informação afixada num cartaz, que existe dentro das ruínas amuralhadas um refúgio para os gatos. São tratados, alimentados e, para impedir a proliferação, castrados. Aquele lugar entrou nos hábitos das desapiedadas pessoas que já não querem os gatos que tinham em casa. É lá que os abandonam. Até existe horário marcado para a função. Mal por mal, ao menos que os deixem por ali. Os gatos continuam a ter tratamento decente.
(Não estava lá informação que permitisse saber qual o sexo mais castigado pela castração. Adivinho que serão as gatas. O cio é o detonador do instinto carnal nos machos. O que está mal: afinal, quem está sempre disponível para a função são os gatos – isto não faz lembrar outra espécie animal? Ponho-me a pensar se a ocultação da informação não terá sido para travar os protestos das feministas. No pressuposto das feministas o serem a sério, não restringindo a militância ao funil do antropocentrismo.)
Amante dos limões, seduzem-me os múltiplos aproveitamentos do citrino pela gastronomia italiana. Ele é a limonada, os sorvetes, os granizados, os doces que levam limão e, descobri anteontem ao jantar, até um suave e aveludado molho de limão que acompanha um esparguete. Pudera, os limões dão-se bem com o clima e o solo. Com o bom tratamento que a cozinha italiana dispensa aos limões, não acredito que seja possível ver limoeiros carregados e já com muitos frutos a caminho do apodrecimento. Como acontece na nossa terra, onde há abundância de limões e o imponderável racismo gastronómico, que parece emudecido perante as vibrantes capacidades do citrino. Somos muito taciturnos para apreciar o forte travo azedo do limão. Ou gente que detesta paladares (e sensações) desafiantes.
Por falar em limões, o calor faz milagres. O estio acalorado aligeira o vestuário. As italianas não se inibem e os olhos agradecem. Pelo que fui reparando ao andar nas ruas, os homens fazem jus à fama de galanteadores (também podia ser visto numa outra perspectiva, mais – como dizê-lo? – capciosa, o que levaria pelos caminhos ínvios da lubricidade, o que em terra tão santa é – como dizê-lo, outra vez? - pecaminoso). A efervescência latina, a que se junta a expansividade típica dos italianos, celebra a forma festiva como a vida é levada. Os de lá de cima, bretões, germanos e hunos, circunspectos (excepto quando se embebedam magistralmente), reprovam a algazarra. De dedo em riste, lembrando que são eles que entram com a massa na União Europeia, lamentam que estes latinos vivam só a pensar no hoje. O que os leva a gastar o que têm, o que não têm e até o que não é deles.
Os hunos & companhia talvez não tenham a razão toda. É engraçado como a Itália é uma transição entre estas duas Europas – a estouvadamente mediterrânica e a disciplinada anglo-saxónico-nórdica. Andamos pelas ruas e vemos italianos e italianas que têm fisionomia germânica (loiros, altos, espadaúdos, olhos claros). E, consta, nem assim evitaram o efeito contagiante da perene celebração latina da vida.
De Itália regressa-se à entristecida, lamuriosa terra que celebra a melancólica saudade no fado carpideiro com uma enorme lição. Só somos latinos na tez, nos cabelos e nos olhos. Somos uma aparência de latinidade.
(Em Roma)

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