12.7.10

Mão Morta e mostarda de Dijon


In http://menuespecial.com/blog/wp-content/uploads/mostarda_reine_anciene.JPG
Gastronomicamente falando, há experiências que não são para qualquer um. Iguarias exóticas para os aventureiros. Mas nem é preciso entrar no santuário das esquisitices pantagruélicas. A gastronomia tradicional roça a perplexidade quando a ementa é decantada por um forasteiro. Agora vou testar os limites um pouco mais à frente: algumas dessas iguarias que pertencem ao imaginário colectivo também não são para qualquer indígena. Quem as experimenta pela primeira vez esbarra em sabores invulgares. Os que se ficam pelos sabores tragados na primeira garfada não voltam a visitar o petisco. Há quem seja perseverante. Ouvem dizer que o repasto é digno dos deuses. A primeira reacção do palato não o confirma. Sobra a teimosia, andar às voltas com os sabores. E eis que a insistência compensa: de repente, os sabores que seriam esquisitos são um novelo de paladares divinais. Mas só ao alcance de uns quantos. Os que souberam persistir e romper a barreira que escondia os paladares desconhecidos.
É esta imagem que passa pela vista de cada vez que ouço pessoas a negarem com veemência a obra dos Mão Morta. Para começar, não a conhecem. Quando muito uns acordes, no máximo uma música inteira, a pose pouco convencional do vocalista. Outros, os que conhecem a famosa história da navalha que Adolfo cravou na perna a meio de um concerto, retêm a imagem satânica para negarem provimento aos Mão Morta. Mas isso já foi há vinte e cinco anos, quando todos fizemos asneiras nos anos vertiginosos da juventude.
O som cru das guitarras encavalitadas, a voz gutural do Adolfo quando declama os poemas, os poemas muitas vezes sombrios, assustadores, num sobressalto quase constante – estes são os ingredientes de difícil digestão dos Mão Morta. Regresso à metáfora gastronómica. Nem todos conseguem lidar com certos ingredientes que se compõem num iguaria insólita. Muito poucos, aliás, o conseguem. Duas experiências pessoais de sentido contrário: sarrabulho doce e mostarda de Dijon.
Uma vez, num périplo por Trás-os-Montes, fui hóspede de uma velhinha muito simpática numa aldeia perdida no meio do nada. A senhora, muito hospitaleira, serviu ao jantar um cozido à portuguesa digno dos deuses (eram tempos em que tinha o animalesco hábito de comer carne). Para a sobremesa estava reservada a surpresa gastronómica, o verdadeiro soco bem no meio do estômago: um sarrabulho doce. A coisa era feita de sangue de porco – e eu que sempre abominara pratos em que este ingrediente fosse protagonista. Vinha misturado com nozes, pinhões e passas, passado por mel que lhe dava uma textura levemente adocicada. O imperativo do bom forasteiro (ou a covardia de não dizer não) tolheu a recusa da iguaria.
O que retrata fielmente a obra dos Mão Morta é a experiência da mostarda de Dijon. Aliás, uma experiência que se renova de cada vez que a especiaria acompanha um prato. É como se a primeira vez da mostarda de Dijon se repetisse a cada vez que ela acompanha o repasto. Há pouco usava a metáfora do soco no estômago, mas é metáfora que peca por defeito ao simular a sensação da mostarda de Dijon. É uma dor intensa, aguda, que sobe do nariz ao cérebro. A respiração sustem-se por uns segundos enquanto aquela intensa sensação não liberta o cérebro da súbita cefaleia. Acho que foi a primeira (e talvez a única) vez que consegui associar dor a prazer. Aprende-se a gostar da mostarda de Dijon. Os que, desagradados com as sensações fortes, desistem à primeira, alinhavam num instante a sentença da mostarda de Dijon. A ela não regressam. Vinga o preconceito por demissão da insistência. Tal como acontece com os ouvidos tísicos que reprovam, sem direito a segunda tentativa, a audição dos Mão Morta.
Eu digo, todavia: ainda bem. Há um certo culto que amplifica a excelência que não é compatível com a popularidade. Por acaso vende-se muita mostarda de Dijon por cá? 

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