22.5.18

Desjeito


Jack White, “Over and Over and Over”, in https://www.youtube.com/watch?v=ShCRN3tFy80
A prova sem ser na ponta de baioneta: só é preciso ser o habitual – desastrado sem remédio, a palavra desaconselhada no pior momento possível, o gesto indevido, o tropeço no idioma e assim o idioma maltratado, um histrionismo incorrigível, a noção geral de que anda a descompasso do mundo. 
Não faz nada por mudar. Já tentou e o resultado foi pior. Exagerava no esforço mas continuava a cair nos vários ardis de si mesmo. Não precisava de algozes a espalhar armadilhas; só por ser quem era, fazia a vez dos algozes e constituía-se vítima de si mesmo. Valia que as consequências dos desastrados atos eram banais. Das asneiras não colhia grandes males. Os de fora esboçavam um sorriso largo quando eram anunciados do asnear militante. As mãos eram um repositório de desastres. Parecia tê-las untadas num qualquer líquido viscoso, tantas as vezes que as coisas que às suas mãos iam parar acabavam no chão – umas vezes sem dano maior, outras vezes estilhaçadas. 
Mesmo sendo incorrigível catedrático do desjeito, não aprendia a conviver com o predicado. Sempre que era fautor de uma desastrada coisa, ruborizava e era algum desconforto que exibia, porque os que o ladeavam não conseguiam esconder um sorriso sarcástico, um certo escarnecer do desjeito. Convenceu-se, a páginas tantas, que era irremediável, o desjeito. Tinha de aprender a aceitá-lo. Tinha de aprender a ignorar os que o escarneciam. Foi quando descobriu que podia ser mecenas da desastrada feição, reunindo semelhantes seus numa associação. Não era propósito condoerem-se em público, nem queriam a comiseração dos outros. Apenas queriam um módico de compreensão, que os outros, diferentes deles, não se servissem da óbvia desqualificativa para serem seus usurários de troça. 
Não foi preciso. Numa inesperada reviravolta (como é apanágio das modas), ser desastrado passou a constar das condições que animam o charme junto dos semelhantes que assim não são. Quem se enamorava de um desajeitado não sabia explicar – como costuma acontecer nestes preparos do amor (sente-se, não se indaga a hermenêutica do sentimento). O jogo foi virado do avesso. Já poucos ridicularizavam os desastrados sem remédio e o seu infindável rol de tremendas asneiras. Agora eram o ponto onde se ancorava a inveja. Alguns, anotando a mudança de paradigma, ensaiaram ser tutores do desjeito. Não conseguiam. Ser um desajeitado era tão difícil como ter um dom qualquer.  

Sem comentários: