25.5.18

Como ser uma pessoa recomendável


Trentemøller, “Gravity”, in https://www.youtube.com/watch?v=vV3U6j8ZGuw
Tenho-me por pessoa recomendável (não é que o assunto assalte o sono). Sei que sou juiz de mim próprio para assim me considerar. E sei que juízos outros poderão não afinar pela concordância, podendo haver fundamentadas razões para desalinhar do preceituado acerca dos meus pergaminhos. Para os que se têm a si mesmos em muito elevada consideração, e apenas para os casos em que não há entorses à honestidade intelectual (porque um crápula pode saber que o é e, em total negação de si mesmo, ou só por provocação, se considera pessoa reputada), ser tido como pessoa recomendável é um processo moroso.
Há uma questão lateral que pode contaminar uma reputação: se me der com pessoas não recomendáveis, torno-me uma pessoa não recomendável? A vulgata dirige a resposta para o sim; o convívio com pessoas de duvidosa reputação atua como doença contagiosa: quem não é pessoa não recomendável transfigura-se numa por osmose quando passa muito tempo com pessoas que sejam habilitadas no mercado das pessoas não recomendáveis. Parece conclusão precoce e superficial. Parte do pressuposto que a má reputação, e os atos que com ela vêm de mão dada, se colam irremediavelmente aos que, à partida, são à prova de bala. Não se conta com a personalidade da pessoa que se expõe ao escol dos de má reputação – se for forte a personalidade, é imune aos desvios que o determinam como pessoa não recomendável. Não se admite a possibilidade de a influência atuar em sentido contrário: os que não são recomendáveis podem ter um súbito sobressalto e reveem-se no companheiro recomendável, querendo imitá-lo e abjurando o capital de desconfiança que era nutrido pelos seus maus pergaminhos.
Haveria muito a indagar sobre os cânones que autorizam as conclusões sobre a “recomendabilidade” de uma pessoa. Por que estalão se determina que uma pessoa não é recomendável? Quem ajuíza? Damos crédito ao julgamento se tiver a autoria de uma pessoa recomendável (aos nossos olhos) e o mesmo crédito se ele partir de uma pessoa não recomendável (também pela nossa bitola)? Não pode operar um efeito aritmético de anulação de dois iguais, arvorando à condição de pessoa recomendável alguém que tenha sido atirado para o opróbrio de não ser recomendável por alguém que, manifestamente, não é recomendável? E o contrário: quando, em clara sintonia que se confunde com um cerimonial de proteção de casta, uma pessoa recomendável recomenda outro seu par como pessoa recomendável, podemos desconfiar da solidariedade corporativa e escolher uma delas (ou, se calhar, as duas) como pessoa não recomendável?
Ser uma pessoa recomendável não obedece a roteiro. Não importa invocar valores e o seu imperativo respeito como precondição para entrar no olimpo dos recomendáveis. O conceito (de pessoa recomendável) é como o vento que se esquiva entre os dedos das mãos que o querem emoldurar: impossível de delimitar. Uma desimportância. 

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