8.5.18

O epicurista improvável


Dead Combo, “Waiting for Nick at Rick’s Café”, in https://www.youtube.com/watch?v=ywAPyZ308os
De fonte segura: era exatamente o contrário do que assinalava a sua presença em público. Acreditava-se na sua erudição, nos muitos fóruns em que se fazia notar, na militância desmultiplicada em associações cívicas, nas artes, em que também tinha lugar próprio, no discurso eclético e palavroso. O ativismo frenético só podia ser compatível  - dizia-se, de fonte segura – com poucas horas de sono. 
Era tudo uma máscara. Queria que dele pensassem ser quem a exteriorizada figura aparentava. Fazia de propósito. Garantia-lhe notoriedade, alguma autoridade intelectual que vinha a jeito para contornar polémicas, pois não devem, os investidos de autoridade intelectual, provar os argumentos que terçam em polémicas. Também garantia alguma respeitabilidade, sendo levitado ao degrau de onde espreitam sobre os demais, com sobranceria a preceito, os senadores. As sinecuras que perfilavam privilégios de tratamento eram superiores à sua vontade. Por mais que teorizasse sobre as “virtudes republicanas”, sobre a igualdade como destino a prazo da humanidade; as ideias não ficam mal a quem as lega ao conhecimento, mesmo que desse papel não irrisório subjaza um estatuto de escol.
No seu íntimo, que não mostrava a ninguém (não fosse sua escolha uma reclusão monástica), era tudo na antítese do que exibia a abundante presença pública. Era epicurista. Se dele se descobrisse tal faceta, adivinha-se o sobressalto que a revelação causaria. No seu íntimo, desligava da corrente elétrica a que parecia perenemente ligado. Não lia. Não via televisão. Não se importava com as ideias que eram atiradas, em seu perfeito contraditório, para a arena onde eram adestradas. Não escrevia uma frase que fosse. Dormia dez horas por dia. E nem com a morte se importava: um insolúvel agnosticismo não o amedrontava diante da morte e nem testamento deixara – os distantes sucessores que resolvessem o legado. 
A epiderme de epicurista improvável era a válvula de escape para a condição da visibilidade pública. Sabia que tinha um desígnio: fazer da presença aos olhos dos demais o oposto da intimidade que reservava do olhar alheio. Ninguém sabia do seu incorrigível lado epicurista. Como perseverava em esconder o lado íntimo do olhar alheio (ou não fosse ele, por definição, íntimo), provinha na abundante presença pública a antítese do que se reservava a ser na fortaleza que escondia de toda a gente. Pelo tempo fora, sempre guardou a dicotomia de personalidades. 
A certa altura, ficou apreensivo. De tanta dicotomia de personalidades, não sabia qual delas (e se alguma delas) correspondia ao seu eu. Já não sabia se era de esquizofrenia que se tratava, ou se conseguia conter dentro de dois herméticos hemisférios personalidades que gravitavam num contraste tão perturbante. O epicurista venceu o braço-de-ferro: a dúvida existencial não tem lugar na medula de um epicurista. Depressa lhe passaram as dores existenciais e continuou, mas em segredo, a ser lídimo epicurista.

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