3.5.18

Sonha comigo


Julia Holter, “Betsy on the Roof” (live at Pitchfork Music Festival) in https://www.youtube.com/watch?v=NUfBEf-cV6I
Sonha comigo. A dormir. Ou quando estamos ambos acordados. Quando estamos por junto. Ou quando há uma distância que não nos separa. Sonha comigo. Serve-te das minhas veias e navega em sua ebulição, para adornares os teus, meus sonhos uníssonos. Pois sabemos que os sonhos se encenam em seus deslimites. Cabe-nos, tutores dos sonhos juntos, empurrar os deslimites para o mais longe que seja possível, para telhados só por nós conhecidos. Somos ambiciosos adestradores de sonhos e contentamo-nos com a empreitada.
Sonha comigo. Como quem diz: sonhemos os mesmos sonhos juntos, sonhos feitos ímpar por sua fusão na quimera dos nossos corpos. Sonhamos com as cidades a que fomos. Sonhamos com a música que já vimos tocada. Sonhamos com todas as peças de teatro de que fomos espetadores – mas sonhamos, sobretudo, com a peça de teatro que montámos num palco que nos é próprio e com as peças de teatro que forem o fruto da nossa vontade no devir. Sonhamos que os sonhos não são a ilusão de um sonho; sonhamos que os sonhos são matéria tangível, apropriados pelas nossas mãos, transfigurados no lugar em que somos nós. 
Sonha comigo. Ao mesmo tempo. Comunga das sementes em que prosperam os meus sonhos, faz deles teus. Prometo retribuir e em teus sonhos medrar a minha quintessência. Prometo sonharmos com as cidades que ainda temos por visitar, com toda a música que há de ser altar a nossos pés, com o teatro que continuamos a encenar, num novelo imorredoiro, muito para além da finitude dos corpos. Prometo que havemos de sonhar teatros que ainda não imaginamos.
Sonha comigo. No entretecer das mãos, no lânguido olhar que se funde, nas varandas que trazemos no regaço, nas flores que colhemos dos dedos suados, da chuva que amacia os rostos. Aceitamos os ocasionais, implausíveis pesadelos que se enxertam nos sonhos de outra lavra; conduzimos numa estrada estreita e não temos a total intendência das coisas que pertencem ao domínio dos sonhos. Pois é no pesadelo também junto que nos desembaraçamos mais depressa das teias em que se tece. Para depois deixarmos desimpedida a vasta planície onde se congeminam os sonhos que temos para sonhar juntos. 
Sonha comigo. Sabemos que os sonhos se transferem para a casa em que somos imperadores. Pois somos nós os seus fautores; somos nós que, com a convicção de um uníssono singular, damos ordem para a verificação dos sonhos. Sonha comigo. Pois juntos sonhamos o idílico algébrico do infinito, despidas todas as mortalhas anciãs, recusados todos os embaraços boçais. Para só ficarem as estrofes sem limites que costuram a imensidão onde, terraplanados, os sonhos se fruem no campo caiado dos corpos abraçados. Abraçados aos sonhos que são segredo que guardamos a sete chaves.

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