4.5.18

Os alcoviteiras


Thundercat, “Them Changes”, in https://www.youtube.com/watch?v=GNCd_ERZvZM
(Não é erro, a falta de concordância de género entre o substantivo e o artigo definido)
                  Nem as togas diluem o “espírito de porteira”. Um togado, nos bastidores do palco onde se apresta, ele e os demais togados, a ir a cena, faz conversa de circunstância com os restantes. A língua viperina não precisa de atalaia, naquela sala que tem as paredes seladas. O togado tece considerações sobre os últimos rumores do microcosmos académico, ao jeito de uma banal revista cor-de-rosa. 
Dois dos outros togados entram na converseta, deixando o ar circunspeto ao darem conta da oportunidade para afiarem a língua. A excitação sobe uns graus quando o togado que deu à ignição comenta que um dos seus pares (não presente, como é óbvio: a lição primeira, é só falar nas costas de quem está ausente) se tinha perdido de amores por uma também par de todos eles. A novidade, era a diferença de idades: a consorte é muito mais nova que o seu insigne par. O que motiva alguma inveja no comentário restante. (Não fosse dar-se o caso de os togados em animada troca de impressões mundanas serem sexagenários, estabelecidos pais de família há um ror de anos, e a instituição onde têm responsabilidades ensine um catecismo que não tolera desvios ao santo matrimónio.) A converseta soou a pura inveja do noutras ocasiões togado que conseguiu seduzir uma também par muito mais jovem. 
Não é a cobiça (hipotética) que vem ao caso. O que importa, é descobrir que gente com pergaminhos intelectuais descai para o chinelo da inconfidência e faz conversa, animada e demorada, que podia vir em forma de “prosa” numa revista que documenta as frivolidades que se expõem na passadeira onde desfila a “nata” da sociedade. São como porteiras sem terem portas para guardar – a não ser as portas que se entreabrem à sua imensa curiosidade leviana. Para os titulares do pensamento igualitário, não seria surpreendente a revelação (para mim, foi-o): assim como assim, devemos viver num lugar onde não são toleradas castas ou elites, em nome do sacrossanto valor da igualdade. 
Talvez sem o saberem, os togados fizeram a vontade à cartilha do igualitarismo. Sendo alcoviteiras assanhadas não reproduziram as diferenças de pergaminhos, deixando a falar, por sua própria voz excitada, a indiferença entre os togados e as porteiras que se cansam no dia a dia de tanta prosápia trocaram com as circunstantes. Talvez sem o saberem, contudo: pois os togados fazem repousar parte da sua autoridade intelectual no atávico ritual das togas em sessões que exigem um cerimonial que também celebra a elite a que pertencem. 
Por um momento, dei-me absorto num (possivelmente não surreal) pensamento: e se as porteiras vestissem togas e os togados se passeassem com uma esfregona a tiracolo?

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