Mogwai, “May Nothing But Happiness Come Through Your Door”, in https://www.youtube.com/watch?v=t1oxICtQh_A
Não há problema. As túlipas não vão secar. Nem nos dias de ausência. A jarra ficou provida de água bastante. As túlipas hão de continuar a medrar, hão de continuar a ser manancial de um ar puro, exalando toda a sua beleza, enchendo a casa com as suas pétalas carnudas – como se fosse possível as pétalas destacarem-se dos caules que as aprisionam e multiplicarem-se pela casa. Podíamos chamar à casa a casa das tulipas. Das tulipas azuladas, em rima com os dias soalheiros que se compõem e que, depois da chuva do calendário, entram pela pele e nos projetam uma renovação que não podemos desdenhar.
Podia ter-me esquecido das túlipas imarcescíveis. Podia ter-me esquecido de acomodar as tulipas na jarra que as serve, ficando espalhadas em cima da mesa, à espera que a sede as consumisse num leito de morte. Não houve esquecimento. Sabemos, agora que digo que deixei as tulipas devidamente acondicionadas na jarra, que assim que abrirmos a porta de casa ela se encontra florida à nossa espera. Por todos os cantos, uma irradiação floral que nos atira com oxigénio à cara, para que nunca sejamos reféns da apoplexia. E, através das tulipas que glosam o sol, nas pétalas que se abrem generosamente à luz solar, saciarmos as outras sedes que nos acometerem. Para depois seremos os guardiães do tempo, recusando a sua usura, perpetuando as tulipas como quadro centrípeto da casa.
Às tulipas, faremos uso em harmonia com a sua altivez. Não seremos seus servidores; às tulipas fica cometido esse papel: podemos rasgar uma tulipa, moldar a matéria das pétalas como se fosse plasticina e dela criarmos artefactos que ornamentam os nossos corpos. Podemos suplicar a uma tulipa que forneça um mapa da felicidade. Não que precisemos, pois já somos tutores de uma felicidade sem raiz quadrada nem número por limite. Não que precisemos; mas não é inglório perguntar à tulipa, assim destacada, se o mapa que nos lega quadra com a felicidade que é nosso ingrediente.
Esperamos a resposta da tulipa genesíaca. Um daqueles atos predestinados. Fazemos a pergunta e intuímos a resposta: temos a certeza da felicidade de que nos compomos. É das poucas certezas que podemos trazer no embaraço das certezas. E nem carecemos de selo exterior, pois a felicidade de que somos tutores não é apreciada por mais ninguém no exterior de nós.
Talvez queiramos dar uso às tulipas que estão na jarra a emprestar graciosidade à casa; ou as tulipas personificam a felicidade com que tingimos as paredes da casa. Um mero pretexto, como se fosse precisa a bênção das tulipas que ficaram devidamente acondicionadas, e com água a preceito, na jarra.
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