Wand, “Pure Romance”, in https://www.youtube.com/watch?v=NdD5_UMUxDI
Apetece-me: invadir uma estufa onde se cultivem framboesas e colhê-las na avidez do meu apetite; sulcar a corrente de um rio indomável, saltando entre as rochas que irrompem das águas frias; ir ao teatro e sorver as palavras demiúrgicas da peça, mesmo sabendo que àquela hora não há função (minha será a empreitada de substituir o enredo); escrever um texto sem adjetivos e frases longas, na difícil tarefa da simplicidade; hoje apetece-me mousse de chocolate, nem que seja daquelas empasteladas que advêm de preparados artificiais.
Hoje apetece-me: desapetecer o dia, deixando o corpo estendido na languidez, aprisionando o pensamento ao nada; fazer malas e depois desfazê-las (como se houvesse necessidade de adestrar a arte de emalar); fincar os pés no chão, sentir as suas raízes, sentir as veias a latejar com a emoção de uma pertença; pegar num livro que pertence à estante e, ao calhas, abrir numa página, ler essa página três vezes seguidas e depois reescrevê-la sob o olhar contundente de um crítico manso; almoçar na Casa Guedes; colher uma camélia prematura e deitá-la à lapela; hoje apetece-me mousse de chocolate, apesar do aluvião de calorias que aí vem.
Apetece, ainda: trazer do entardecer a maresia que se levanta; enfeitar o dia sobrante com estrofes cerzidas no alpendre da música; obedecer aos apetites vulgares e não reprimir os apetites implausíveis; ficar acordado pela noite fora, caminhando nas ruas desertas; desenhar a lua numa folha de papel subtraída ao amarrotado; dizer palavras que não sabia existir, jogando com a sua musicalidade; deitar fora objetos guardados no baú de recordações, sem critério; fazer uma tatuagem (mesmo sabendo que a meio da madrugada não há estabelecimentos comerciais abertos – ou, talvez, por essa razão); hoje há de apetecer, quando for hora a preceito, uma boa colherada de mousse de chocolate, mesmo que seja rafeiro o cacau usado.
Apetece, hoje: encher duas páginas inteiras com rimas simplistas; recomeçar aquele livro do Saramago que fechei na página vinte e sete (por causa da ausência de pontuação); escrever às divindades supostas, perguntando por seu paradeiro; telefonar a um amigo, só para saber se está bem de saúde; oferecer uma nota gorda ao primeiro mendigo; estacionar no aeroporto e apreciar a coreografia dos aviões ao aterrar; desatar preconceitos antigos, esvaziando-os por dentro até que percam sentido; meter as mãos na terra molhada logo após a chuva e sentir o aroma inconfundível (para desafiar a pertença que tumultua as veias); hoje hei de comer uma mousse de chocolate, de preferência gourmete preparada segundo uma receita original.
Hoje apetece-me isto e o mais que possa vir no sargaço do improvável. Porque o mundo, lá fora, está impossível de aturar.
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