21.5.18

A enseada


Mazzy Star, “Quiet, the Winter Harbor”, in https://www.youtube.com/watch?v=WBbEVzgoEhA
Os barcos descansam no mar à frente da enseada. Não a espiam; no seu descanso, porque querem refúgio da noite, homenageiam a enseada: detêm-se de frente para ela, em sinal do tanto que a reverenciam. 
Os tripulantes e os passageiros dos barcos contemplam a pulcritude da enseada. Nós, que estamos deste lado da enseada, somos parte da enseada aos olhos dos passageiros e dos tripulantes dos barcos ancorados diante de nós. A certa altura, indagamos sobre o que veem os olhos deles nesta que é a posição diametralmente oposta à nossa. “Vemos diferentes enseadas”, murmurou a tua voz, enquanto os olhos desfilam pelo cortejo dos barcos que parecem estar de peregrinação à enseada. “Aposto que eles contemplam uma paisagem mais bela do que nós – e, todavia, estamos no mesmo lugar, apenas a olhamos deste ponto de ancoragem diferente; o que pode fazer toda a diferença”, concluíste. E eu, demoradamente em silêncio. À espera que o entardecer esculpisse a luz desmaiada e ela fosse substituída pela constelação de luzes que ornamentam os barcos. Depois de um longo silêncio, contrapus: “Será que o mesmo lugar é desigual se o olharmos desde pontos diferentes?” 
O meu silêncio deu a vez ao teu silêncio. Continuámos entretidos a observar o êxtase das pessoas que estavam a bordo. Estavam maravilhadas com a enseada; talvez estivessem ansiosas para estar na nossa posição, para saberem como era sentir a enseada com os pés em terra firme. Admitimos que talvez fosse a primeira vez que visitavam a enseada. Ou, talvez ainda, estivéssemos a ser injustos com a enseada: de tão infinitamente bucólica, as pessoas não sentiam fadiga da sua beleza de cada vez que a visitassem. 
De volta à conversa entrecortada pelos silêncios que quadravam com a solenidade da enseada, disseste: “Não importa de onde nos fazemos observadores. Apenas importa o feixe de sensações que nos invade ao sermos deslumbrados pelo fausto do lugar.” Concordei. O nosso lugar era o de marinheiros sem navio, fulgurantemente arrebatados pelos contornos da enseada que, àquela hora, se fundiam com o entardecer já mergulhado na penumbra. A falésia crescia desde a praia, abraçando a enseada, tornando-se numa semicircunferência que, por sua vez, parecia abraçar-nos e aos barcos que na enseada procuraram refúgio. 
Com as primeiras iluminações a sinalizaram a noite infante, as pessoas recolheram-se ao interior dos barcos. “Devem ter ido jantar”, foi o teu presságio. “Não precisavam”, arrisquei uma metáfora: “a enseada é alimento bastante.

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