30.5.18

O ateador de fogueiras


Prince, “Purple Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=TvnYmWpD_T8
Foram proveitosas as aulas de química: o fogo tem o predicado de tudo consumir na sua imparável voracidade. Com a combustão a elevada temperatura, sobram umas cinzas indistintas. Não ficam restos para contar ao futuro o que foi o passado. 
A certa altura, considerou que tinha em mãos o desafio da imperscrutável História, da História incómoda que não o largava. Talvez o segredo para resolver o imponderável, fosse tornar-se incendiário. Não um incendiário vil, que ateia fogos em florestas feitas de árvores a sério, apenas com o prazer de ver o fogo tornar-se invencível, ou apenas como peão da terrível maquinação dos interessados em tirar partido de florestas carbonizadas. Seria incendiário do passado incómodo. Logo ele, que tanto vituperava a soviética condição do revisionismo histórico; convenceu-se, porém, que se tratava de planos diferentes. A limpeza do seu registo passado não afetaria ninguém. Melhor dizendo: podia dar-se o caso de expurgar umas quantas pessoas dos anais, mas não seriam informadas do facto. Era um bem superior que se adensava no fio da memória: era imperativo resgatar alguma serenidade para se reconciliar com a História sua. Se tivesse de ser à custa de fogueiras ateadas, qual censor de si mesmo, não havia outro remédio.
Não contou a ninguém. Tinha a certeza que seria desaprovado nas suas intenções, pelo cisma que é reinventar o acontecido através de uma lente que separa os acontecimentos incómodos e os destina à pira onde são incensados. Seria uma função que só ele saberia acontecer. 
A seletividade impunha-se. Teria de recuperar da memória aquilo que queria dela banido. Era um exercício esquizofrénico. À medida que inventariava os relapsos momentos de antanho, ateava a grande fogueira onde seriam consumidos. Era tarefa para demorar – o inventário e o incensar da larga fogueira. A coincidência vinha a calhar. Não era com ligeireza que se separavam os acontecimentos. Primeiro, era necessário compulsá-los. Saber os que eram desmerecedores de inscrição nos painéis que habilitam a memória. Segundo, era preciso avaliar se um acontecimento em forma de sobressalto tinha mesmo sido um sobressalto; não se podia dar o caso de a seletividade extravasar o razoável e pedaços largos da memória acabassem obliterados (para não haver o risco do refazer da identidade). Terceiro, era preciso ter o desassombro de renegar o que havia a renegar, definitivamente, através da sua redução a cinzas por ação da fogueira. Era preciso ter a noção que a fogueira não admitia retrocessos. 
Acabou por ser modesto. A fogueira ateada era um pequeno fogo onde apenas meia dúzia de resgatados atos foram atacados pela combustão. O pior, era a ideia de que por mais voraz que tenha sido a fogueira ateada, não tinha sido possível banir esses proscritos acontecimentos do inventário da memória. A memória era ignífuga. Antes que fosse totalmente consumido pela fogueira – não fosse decair na tentação de a tornar indomável, para perceber se conseguia arregimentar mais memória ateada –, recuou nas intenções. Apagou a fogueira e aprendeu a conviver com o eu que era o lastro de todo o tempo pretérito.

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