28.9.18

Montra paralela (short stories #38)


Idles, “Samaritans”, in https://www.youtube.com/watch?v=si2pZRifgIo
          As harpas embebem o ar com a sua melodia fina e as pessoas procuram a paz do coração vagaroso para retardar o tempo fugitivo. Não sabem do inventário dos males, que deixaram de permitir a entrada das dores na janela primária. Também não é o denso arrazoado dos pueris eruditos que apimenta a atenção: as pessoas descobriram, julga-se que a tempo, que o discurso gongórico é um filtro banal de quem se julga orador recitado, diante de uma plateia só falsamente atenta, e se permite o devaneio de perorar demoradamente: na linguagem consagrada pelo povo, “é preciso encher chouriços”, a arte superior dos eruditos que não parecem ter saído da infância. Monta-se montra paralela na avenida do entendimento. Os dados são jogados ao acaso por múltiplos jogadores e, avulsos, confessam um determinado fado. No instante seguinte já se perdeu o fio à meada, na desatenção com outras romarias que afluem ao pensamento (ou não se estivesse na avenida do pensamento). A meio do colóquio, um erudito pede a palavra. A audiência começou a dispersar, lenta e discretamente (para o erudito não ser acometido por uma fúria inveterada e disparar impropérios caldeados com vocábulos que ninguém conhece). Só fica um louco. O sorriso lunático é entendido como aprovação pelo erudito. Inebriado pela verve que julga distintiva (e distinta, ora essa!), o erudito deixa embaciar o olhar por imagens que saqueiam a fronteira da miragem: está convencido que a praceta está repleta de gente ávida por beber as suas impressionantes palavras. O erudito desengonçado montou a sua montra paralela. Não quer saber da higiene, nem da roupa já quase andrajosa, nem da barba descuidada: a estética é para os fracos de espírito. Quase no epílogo da função, o erudito foi ao bolso e tirou um revólver. Se a praceta estivesse cheia – e com policiamento a preceito – o pânico levantaria âncora. A sorte do erudito foi só ter o alucinado, imerso na sua passiva demência, na audiência. Nem deu conta do revólver. Continuou a sorrir como se estivesse a ver um programa de humor. O louco não seria tão louco como se esperava. Aquela récita, com a pose solene e intrinsecamente académica (outra frustração do erudito, pois então), a excitação das proclamações contundentes e a revelação dos imperativos categóricos, à prova de qualquer contestação, era a versão refinada de um programa de humor. Para bem do erudito, que escapou ao cárcere depois de ter empunhado o revólver, em pose ameaçadora, no clamor da razão que está, porque tem de estar, do seu lado. Não se sabe ao certo: talvez não fosse má ideia condená-lo a um temporário exílio na cadeia. Para arejar o ambiente.

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