Sharon Van Etten, “Jupiter 4”, in https://www.youtube.com/watch?v=W4etGf2PJcA
(Depois da peça de teatro “Uma Noite no Futuro”, encenação de Nuno Carinhas, com textos de Samuel Beckett e Gil Vicente)
A paternidade da consciência: uma dialética constante que entrepõe dois tempos algozes: passado e futuro. Pelo meio, com esquecimento do mais importante dos tempos: o presente. A condição humana presta-se a imperfeições. Um homem vomita sobre o seu passado, vocifera, acena em tom de reprovação ao trazer das memórias as palavras ditas em gravação (e bem o podia ser em forma escrita). Um espírito crítico implacável, o homem o pior juiz de si mesmo; talvez não haveria ninguém de atuar com tanta desaprovação sobre o pretérito redescoberto daquele homem – mas, com íntegra certeza, a ninguém seria dado compulsar as variáveis dos dois tempos e ninguém consegue incarnar aquele homem no seu estado presente.
Na imperfeição não diletante, os dados lançados são como arbustos na sua aparente imprestabilidade. A mesma imprestabilidade de quem conta histórias na posição de narrador e se faz sósia do protagonista. Os tempos mudam de feição, como mudam as feições que se depõem nas vidas. Não custa a ver numa categórica rejeição do passado um módico de madurez, ou, pelo menos, de mudança. E se alguém muda, tanto pode melhorar como piorar a sua condição (ou, não por simples acaso, torná-la teimosamente estacionária).
Qual a serventia do ressuscitar de um tempo enquistado? Serve para reavivar memórias. Umas, heurísticas. Outras, em forma de catarse, como se houvesse a necessidade de cortar as asas de um dogma que silenciava um certo passado. Ou serve, ainda, para reabilitar o estado atual em que o tempo se consome, ditando do passado a caução que o sublima. Pode ser um eufemismo. Um gritante ensimesmar que despromove o passado, deitando-o a um lagar onde se enodoam todas as vergonhas. Servirá para um homem dizer: “eu já fui assim e agora sei que era de plástico, um equívoco sem aceitação.”
Esta dialética esbarra num impossível: o outrora não se reconstrói. É um inerte. Possivelmente doloroso, mas inerte, não aberto à reconfiguração dos tempos, nem a uma reinterpretação que branqueie o arrependimento. É uma página do tempo gasta, que desgasta o único tempo que esse homem, os homens todos, têm entre as mãos. Às vezes, o homem reivindica um mergulho no pretérito para se legitimar no porvir. É quando diz, em contestação da afirmação anterior: “A litania do passado serve para a jura de um futuro que é sua antinomia.”
E o homem assim aprisionado continua a ser uma matéria entre parêntesis, uma promessa sem notário. Um logro imorredoiro, à medida que persiste na dialética labiríntica entre o tempo havido e o tempo que ele demanda de um oráculo. Envelhecendo, a destempo, o único tempo que interessa e que ele ignora: o presente.
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