Ermo, “Púrpura Pálido” (ao vivo da Vodafone FM), in https://www.youtube.com/watch?v=WRDVVZEJEqs
Somos os fautores dos idílicos lugares a que entregamos a pertença. Sem os auspícios de sobressaltos, sem a avareza das imposturas, sem cuidar dos obnóxios limites que correspondem ao território a que somos indiferentes. Arregimentamos um vocabulário sem regras, as palavras que sobram na espuma dos dias; reinventamos a gramática, se preciso for – e, no limite, falamos num dialeto que mais não é do que o idioma aprendido, mas por nós reinventado, como se fosse uma linguagem cifrada.
Tornamo-nos peritos em desminagem. As teias complexas são estradas de sentido único, destravadas no pulso forte que sobre ela exercemos. Não queremos tábuas-rasas sobre os modos que somos; o rigor é a medida necessária para sermos residentes imunes por dentro da armadura de que nos investimos. Somos a nossa própria armadura. Um legítimo trespasse das leviandades; ou em dias ímpares, se nos apetecer, uma digressão por matérias outrora consideradas frívolas. Sempre que nos apetecer sermos atraiçoados no redil da incoerência. Pois não somos sindicáveis por ninguém. Só por nós mesmos. Só somos o que nos apetece ser.
Jogamos o jogo certo no palco que julgamos intemporal. “Aos costumes”, dizemos nada. Não somos apenas rebeldes por dentro do sangue que é feito da mesma massa. Atiramos a insubmissão aos rostos corados dos sacerdotes plúmbeos, porque não queremos se não que nos convoquem para heresias. Não importa. Se às heresias formos impingidos, não se nos dissolve o sono; e até dos sonhos podemos dizer ser seus lídimos arquitetos. Enganados estarão os que duvidarem e, em jeito de desafio, queiram provas de que temos os sonhos sob o vértice da nossa vontade. Sem desdém, desviamos os rostos e não aceitamos o desafio. Outra vez: não somos sindicáveis a não ser diante de nós mesmos.
Este é o parapeito onde temos o precipício sob os nossos corpos, todavia não transidos. De repente, evaporam-se as vertigens. Desfazem-se os medos, todos os medos, quando entrelaçamos os corpos num demorado amplexo, até sentirmos os ossos como que fundidos. A armadura é à prova de bala. Se nos pedirem o segredo, recusamos. Os segredos são dessa têmpera – segredos, matéria inconfessável, o reduto mais fundo que não tem serventia de assomar à tona.
Não é por acaso que criámos a armadura em que temos residência.
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