Cocteau Twins, “Pandora”, in https://www.youtube.com/watch?v=h_ICl20EJjY
A que podemos chamar arte? Quem tem o privilégio de determinar o que é arte e o que falha os requisitos da sua classificação como tal? Diz-se que a arte está reservada às elites. Não no sentido materialista da palavra, mas no sentido intelectual, cultural: só os que corporizam critérios exigentes na determinação da estética e do conteúdo de manifestações artísticas podem caucionar a existência de arte. É um escol restrito, o dos que determinam o que merece ser considerado arte e, desse modo, influenciam uma segunda camada no universo das elites que consomem arte.
A apertada malha em que se considera a existência de arte é um excludente das massas. A arte pode ser acusada de se afastar dos pergaminhos da democracia. A arte reservada a uma minoria – e, ainda por cima, subsidiada pelo Estado – é uma entorse à democracia? Será interpretação exagerada. A arte não fecha portas a ninguém. Não há requisitos de acesso à contemplação de obras de arte que não sejam o interesse do público e o entendimento que possa aferir das obras observadas, no sempre contingente quadro da subjetividade que é património genético da arte. Se o acesso fosse condicionado, a arte seria uma negação da democracia.
Insista-se na interrogação (se a arte é democrática): a especialização das artes, a sua eleição como matéria apenas inteligível para um escol de intelectuais, afasta as massas do consumo de arte. O que traz outra interrogação em sequência: esta depuração das artes, que traz as massas para os seus antípodas, é intencional? Não é aceitável: os que tutelam as artes costumam estar na linha da frente na defesa da democracia; a arte elitista não é intencional, é uma consequência de como são as artes. Por sua vez, as artes que se banalizam, apenas com o propósito de serem “digestivas” para as massas, perdem a sua natureza de arte. Não se pode contemporizar com a banalização das artes. Ou acabamos todos a ser artistas e a arte perde o seu sortilégio.
O divórcio entre as artes e as massas (e dir-se-á: com atribuição de culpa recíproca) é o fermento para um outro mercado onde medram manifestações mais acessíveis que reivindicam o estatuto de arte. Estatuto que, todavia, lhes é negado pelos patronos das artes, os tutores dos padrões estéticos, os zeladores das artes em forma de sortilégio. As elites abjuram essas manifestações dirigidas ao “grande público”. Protestam a sua capitulação ao fácil, ornamentadas pelo óbvio, por uma linguagem simplista e rudimentar, pela utilização de fórmulas que, por serem facilmente digeríveis, seduzem o “grande público”. Não se conformam com a vulgarização, o espetáculo gratuito, o privilégio da forma em detrimento da substância, a ausência de reflexão, tudo se cingindo ao pensamento fácil, não problematizante. Os defensores destas manifestações repudiadas pelas elites invocam, a seu favor, os serviços prestados à imensa maioria que não frequenta os salões onde a cultura se serve entre o reduzido escol. Confessam-se tributários de uma arte que é democrática por ser aberta à imensa maioria.
Estes problemas não se podem encerrar em dicotomias maniqueístas. O que parece difícil de defender são as posições radicais de ambos os lados. Nem os estetas que reservam para si a tutela do que é arte, do que é a cultura, podem propositadamente encerrar as artes numa dimensão inacessível à maioria; nem os que patrocinam a banalização das artes podem chamar a si a razão democrática por levarem, e com êxito, as suas fórmulas simplificadas de arte ao “grande público”. Não parece que respondam à procura do grande público: de uma certa forma, “educam-no”, formatam-no, através destes produtos fáceis.
Talvez falte educação para as artes, para a cultura. O que falta saber é a causa dessa demissão: será uma consequência do hedonismo que instala no pensamento um filtro que o remete para as estruturas simplistas, desse modo sentindo-se corpo estranho diante da arte assim considerada pelas elites? Ou será um modismo que ignora as artes destinadas às elites, pela sua ininteligibilidade e potencial de sedução de gente impreparada para apreciar as artes? O modismo atual, consistente com um modelo que semeia facilidades no sistema de ensino, não é compatível com a educação para as artes e a para cultura. Se o resultado é o afastamento entre as artes e a democracia, a responsabilidade tem se ser imputada aos arquitetos deste sistema de ensino – e não às artes e aos seus curadores.
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