25.12.18

As fadas destituídas (short stories #80)


The Stranglers, “Golden Brown”, in https://www.youtube.com/watch?v=z-GUjA67mdc
          Não era preciso a maldade”, protestavam, em uníssono, as fadas reunidas em conclave. Continuavam sem entender o funcionamento do mundo, a têmpera das pessoas. Por mais que fizessem campanha pela bondade e pelos nobres gestos, tropeçavam num grotesco cortejo de aleivosias, na não salutar desconfiança multiplicada exponencialmente à medida que as pessoas desfilavam em palco, nas palavras ditas que queriam dizer o seu contrário, num mundo mitómano. As fadas ensaiavam um casulo que as pusesse a cobro das excruciantes dores causadas pelo mundo como ele é: fingiam que o mundo era de outra forma, a quadrar com os belos e nobres preceitos que vinham embebidos na sua doutrina. Era como se as fadas vivessem enquistadas num apêndice do mundo, de onde se recusavam a observar o seu peculiar andamento. Restringidas ao interior das suas fantasiosas ameias, as fadas perderam, a certa altura, a capacidade para corrigir os maus vícios dos frágeis atores que iam passando pelo palco do mundo. Como viravam o rosto às ignomínias constantes, não as podiam ajuizar; não estavam em condições de exercer o seu altruísta magistério de influência, ao jeito dos evangelizadores que palmilham o mundo na inverosímil missão de convencer os outros da bondade da bondade. Refugiadas no seu casulo, as fadas perderam préstimo. Se existiam para a pedagógica advertência contra malfeitorias, tentando levar pela mão os malfeitores à correção que se impunha e, quando necessário, às compensações que fizessem regressar ao estado original das coisas prévio à malfeitoria, agora estavam esvaziadas de predicados por sua voluntária demissão. Só elas não tinham percebido que estavam despojadas dos seus artefactos e já ninguém lhes dava crédito. Eram fadas destituídas. Já ninguém as reconhecia. Elas próprias não se reconheciam enquanto fadas. E de tanto fingirem que o mundo não era o lugar hediondo que se cansaram de tentar remediar, as fadas passaram a ser seu intérprete. Se ainda estivessem no uso das suas originais funções, lamentariam, muito compungidas: “o mundo está perdido.” Não era o caso. As fadas, por terem deixado de o ser, encontraram o mundo na sua perfeita imperfeição. A prova de que o mundo tem paradeiro.

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