14.12.18

Temperamental (short stories #78)


The Fall, “Mr. Pharmacist”, in https://www.youtube.com/watch?v=Cl34oJEoO7s
          Ferver em pouca água como excentricidade que se esmaga no peito dos fleumáticos, dos tenores que primam pelo silêncio, das almas adestradas no (que lhes ensinam ser) refrigério da resignação. Não tinha meias medidas. Os exageros eram alinhavados em sucessivas composições de destempero, em palavras sem freio, na indisfarçável incapacidade para depurar o que lhe calhava em sorte (ou em azar). Não queria saber da diplomacia. Não tinha o propósito de passar as palavras por um crivo, pois admitia que só as palavras espontâneas eram retrato fidedigno de um estado de alma. A mentira e o disfarce, deixava-os para os mitómanos, para os que se enredam nas sucessivas camadas de que é feita a diplomacia, sem se conseguir apurar dos obnóxios ocultados sob a feérica capa do faz-de-conta. Não transigia com um argumento que não perde atualidade: se este é o modo dominante, se todos pisamos um palco e desempenhamos vários papeis à vez, ele devia contemporizar com o demais e aceitar que as marés que são vagas de fundo não se combatem com voluntarismos idealistas. Contrapunha: não se trata de ideias, nem de um voluntarismo predeterminado, selado com um propósito acertado com os notários do tempo; é feitio, mau feitio. O temperamental desapego das coisas, sem temer o bastão das consequências. Sem recusar as palavras, que nunca ficam por dizer. Mesmo que doam, a quem as ouve e, às vezes também, a ele próprio. Se temperamental é submeter ao seu exigível crivo a caução dos outros, por se enovelar numa autoexigência que não é de menor índole, não se importa que o vejam como temperamental. Sabe que o lugar-comum do pensamento não tem o temperamental em boa conta. Pouco lhe interessa. Já o disse, e por mais do que uma vez, que não transita pelo mundo para ser achado em boa conta. A autoexigência reaviva o salvo-conduto de que se serve para aparecer (e parecer) um insuportável temperamental aos olhos dos outros. Às vezes, em momentos em que deixa em banho-maria um cinismo indomável, diz a quem o ouve que é seu anseio que não o cuidem como temperamental, que não o votem a caso perdido. E depois ri-se a bom rir, através das costuras da alma, ao apreciar o ar tolerante de quem se comporta como se lhe quisesse conferir uma segunda oportunidade. (Ele, que nem a primeira oportunidade pediu.)

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