U.S. Girls, “Mad as Hell”, in https://www.youtube.com/watch?v=XtGb5NiGBjc
- Que palavra guardas para um acaso?
- Fortuito.
- Só essa?
- ...
- Não te ocorre nenhuma outra palavra se não essa, que pareces ter importado do dicionário?
- Vento.
- Porque o vento sopra aleatório?
- Ele não sopra aleatório: se consultares a rede que retém o vento – em pontes expostas ao vento agreste, ou em aeroportos, ou em estações meteorológicas – saberás a orientação dominante.
- Então: vento, porquê?
- Não dominamos o vento. Ficamos à sua mercê. Já viste a ciência a avançar por muitas áreas. Já a viste a, de alguma maneira, domesticar alguns efeitos da natureza considerados indomáveis. Não há ciência que consiga domar o vento, ou dobrar-lhe as asas de modo a que sopre numa direção predeterminada.
- Mas se souberes de onde vem o vento – porque consultaste o boletim meteorológico, por exemplo – furtas-te ao acaso. O vento não é aleatório na sua chegada. Saberás de onde sopra.
- Eu posso saber, neste preciso instante, a orientação dominante do vento. Se estiver na posse dessa informação, e se me quiser precaver do vento por alguma razão, não fico à sua mercê. O sentido do vento que colho como sinónimo de acaso é outro: penso nas forças atmosféricas que o geram. Admito que há modelos científicos que explicam a ocorrência dos ventos. Não é esse o sentido que me interessa. O que conta é o sentido do vento para um leigo. Como explicas a um leigo que hoje esteja um vento tempestuoso e de sudeste e que amanhã quase não se faça sentir o vento?
- Não sei se o leigo dirá que se trata de um acaso.
- Concordo. Porque é leigo e não esquadrinha as possibilidades que explicam um fenómeno, sem ser da lavra dos cientistas. Um leigo que se interrogue sobre os diferentes humores do vento – creio – responderá que se trata de um acaso.
- Já foste vítima de acasos?
- Não sei. À primeira vista, não lembro nenhuma circunstância que possa dizer ter sido produto de um acaso.
- Todos os dias somos reféns de contingências. Pensa na vítima de um acidente de automóvel que não teve culpa e foi apanhado pela distração de outro condutor, o que foi parar à faixa de rodagem errada: se a vítima tivesse saído de casa cinco minutos antes ou cinco minutos depois, a vítima do acidente teria sido outra pessoa. Ou apenas a que causou o acidente, se àquela hora a estrada estivesse deserta.
- Caímos num palimpsesto de acasos: para admitires uma dessas hipóteses, tinhas de multiplicar a possibilidade de acasos.
- Concordas que das piores injustiças que existem é quando se é vítima de um acaso?
- Não. Não concordo. As injustiças (intencionais, só conto com as intenções) não quadram com acasos. Como vítima de um acaso podes considerá-lo uma injustiça, por te ser assacado o papel de vítima. Mas nem todas as vítimas se emaranham numa injustiça. E depois, o que julgo mais relevante, ao acaso falta intencionalidade. Uma injustiça depende de um ato da vontade de alguém em concurso com o destinatário desse ato e do mal que sobre ele se abate.
- Não posso protestar que a vítima inocente daquele acidente de automóvel foi fustigada por uma injustiça?
- A menos que o outro condutor tenha sido imprevidente; mas partiste do pressuposto que ele estava distraído. Se ele tivesse atirado propositadamente o automóvel contra o da tua vítima, aí podias considerar uma injustiça. Um acaso para a vítima, de que um injusto resultado seria a consequência.
- Continuo a olhar para tudo o que se passa como o cúmulo de uma sucessão quase infinita de acasos. E de acasos que se projetam noutras pessoas, provocando uma cadeia interminável de acasos.
- Se usasses um lugar-comum, dirias, em abono da tua tese, que uma borboleta bate as asas no Pacífico e algures no Índico terás uma tempestade, dias depois.
- É um bom exemplo.
- Mas – sabes? – os acasos não são apenas um prolegómeno de acidentes e de incidentes que apanham em seu caudal vítimas que consideras flageladas pela injustiça. Há acasos que transportam no regaço felizes circunstâncias. Pessoas agraciadas por acasos.
- Termos em que se concluiria dizendo que há ventos tempestuosos que, no mesmo lugar e em hora diferente, se podem transfigurar em alíseos ventos, estes últimos grávidos de sementes de uma opulência qualquer.
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