5.2.19

Bilhete de identidade (short stories #93)


Andrew Bird, “Bloodless”, in https://www.youtube.com/watch?v=YEFLR2JnMd0
          Não procurava cerejas maduras entre a folhagem ressequida. Não sabia dos vulcões adormecidos, pois estando adormecidos não enviam notícias ao mundo. Não queria saber das identidades reinventadas ao sabor dos acasos ou dos modismos. Não queria saber dos apocalipses prometidos pelos arautos cansados com o mundo que existe. Não queria o brio dos predestinados disfarçado de vaidade, nem o salitre dos marinheiros que só conhecem mar. Não queria beber o vinho enfeitado com carestia burguesa. Não queria a erudição dos aspirantes a eruditos, nem o seu discurso gongórico, a sua fina análise, todavia embotada pela miopia dos pretensiosos. Não queria um só lugar como azimute. Não queria a prosápia dos elegantes advogados das causas imperativamente corretas. Não queria seguidismos, modas irrecusáveis, imperativos categóricos, literatura obrigatória, música ditada pelos gostos aparentemente superiores dos divulgadores, gastronomia risível, a mostarda a chegar ao nariz, o encantamento pelos cantores que só sabem gritar, o aval dos amigos que protegem os amigos e que se recomendam reciprocamente num microcosmo de endogamia. Não queria saber de nada que fosse importante. Não queria uma batuta ilustre a ditar caminhos a prosseguir. Não queria que o mar escondesse os silêncios sufragados. Não queria que a noite fosse um sortilégio à prova de naufrágio. Não queria admitir a palavra “arrependimento” no vocabulário. Não queria imaginar ficção científica, por desacordo com a medida temporal exigível. Não queria saber das mentiras. Não queria saber das frivolidades. Não queria objetar aos teimosos que estão seguros das suas certezas. Não queria contemplar a medida inacabada das coisas começadas. Não queria assentimentos espúrios, bocas gastas com palavras vãs, o fingimento que se emacia na impostora cortesia social, nem a boçalidade hasteada em nome da desconfiança. Não queria moedas de troca. Não queria o olhar despedaçado pela violência sem preço. Não queria coabitar com credos que desprezam a autonomia da pessoa. Não queria o alvoroço das palavras desassisadas, da impaciência como método lapidar, das pessoas que coíbem a justiça. Não queria trazer do fundo do poço as águas sujas que com sujidade impurificam o mundo. Não queria que as suas mãos fossem sardónicos expoentes da dilação. Não queria saber do que de si sabiam os outros. Não queria transbordar do eu que lhe era dado a conhecer. Não queria inventariar mais antónimos como sinal de identidade. Temia que não fosse a tempo de compor uma identidade construtiva.  

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