19.2.19

Nunca vivemos aqui


Andrew Bird, “Sisyphus”, in https://www.youtube.com/watch?v=zug1B8DSkWw
Temos um horizonte embaciado, ou uma tela que se desmembra em quatro telas onde os filmes são diferentes, as palavras dos intérpretes atamancando-se num todo ininteligível. Temos o nevoeiro da manhã que esconde a cidade. Temos as noites imersas no sortilégio e os nossos olhos insaciáveis sondando nos interstícios da cortina inamovível. Temos as escadarias alcantiladas que parece não terem fim, como se fosse possível os nossos pés demandarem o infinito. Paramos: é possível os nossos pés demandarem o infinito. Temo-nos. 
Juntamos as mãos na água remanescente. Mexemos os dedos e a água deixa de ser um espelho. Somos nós, caudilhos de uma natureza desenhada nos contornos do olhar. Dizemos: nunca vivemos aqui; parece que nunca vivemos aqui. Pode ser possível. Às vezes, quando nos desembaraçamos de um sonho, e ele deixa outro e mais outro soerguido, uma sequência que faz lembrar uma caixa de Pandora, uma sensação estranha percorre as veias. Diríamos que os lugares são sempre novatos e nós cuidamos de seu batismo. Nunca vivemos aqui: porque o tempo é a efémera condição que desfaz o passado a um espelho estilhaçado contra as montras de onde tiramos os fósforos para acender a noite.
Temos as palavras que quisermos. Enfeitamos os chapéus com as grinaldas ao acaso. Sabemos: estes cromossomas uníssonos são irrepetíveis. Talvez dizer “nunca vivemos aqui” tenha o sentido nobre dos lugares que não voltam a ser visitados. Não é que não sejam caução de beleza, que não se ofereçam dísticos de paraísos modestos e que, nessa medida, exijam revisita. Mas sabemos de tantos outros lugares que por nós esperam. Sabemos da exígua medida do tempo, uma matemática ingrata que coloca o tempo em desvantagem perante a miríade de lugares que queremos tingidos pelo nosso olhar. Oxalá inventassem a profecia do tempo arrastado, para não ser o embaraço à ousadia dos lugares que estão à nossa espera. É lá que, em miradouros sobranceiros, com a cidade espraiada sob os nossos pés, dizemos, e com propriedade, “nunca vivemos aqui”. 
O que temos nas mãos? Os fragmentos que guardamos dentro de nós em memórias insuspeitas. Um grafito algures, uma praça bucólica, a neve sobre o rosto frio, as cidades sumptuosas (prova da genialidade do Homem), os versos abastados no dorso da cidade que se oferece como túmulo inspirador, os hotéis que viveram por nós, os idiomas numa constelação harmoniosa de falas, as fotos das botas sobre o chão forasteiro, a monumental tela que é por nós oxigénio. E a nostalgia do tempo presente.
Nunca vivemos aqui. Nunca vivemos em lugar algum, à exceção de todos os que já nos tiveram por habitantes. Nunca vivemos aqui; porque aspiramos a nómadas e o tempo desprende-se das nossas almas.

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