26.2.19

O homem das cavernas


Sharon Van Etten, “No One’s Easy to Love” (live on KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=DDbwS4h7m9c
Vá vossa excelência ao dicionário, caso se dê o caso de o étimo não figurar entre o vocabulário privado, e procure a entrada “atavismo”. Aparecerá “condição que exprime o reaparecimento, num indivíduo, de caracteres que pertenciam a gerações antepassadas e que tinham já deixado de se manifestar.” Ou poderá aparecer, em imagem a tiracolo, a fisionomia de vossa excelência, ostentada sobre a toga que o industria como dileto membro da magistratura, parafraseando a consuetudinária exigência de o considerar, a par de seus pares, “órgão de soberania”. 
Desça vossa excelência à rua. Coloquie com os transeuntes. Não recuse o trabalho de campo. Para perceber os ventos que sopram, que decerto não terá oportunidade de os experimentar se teimar em resistir do alto da sua torre de marfim, onde as imagens que ondeiam no seu imaginário são descoloridas e tresandam a mofo. Saia. Desprenda-se dos seus pré-conceitos: admita que o exíguo mundo que construiu na cabeça ainda mais exígua de vossa excelência é um anacronismo que o expõe ao risível, de cada vez que excreta sentenças que nem no século XVIII seriam aceitáveis. 
Não seja vossa excelência um homem das cavernas. Para seu próprio bem. A menos que a patologia esteja tão entranhada que nem dos ossos se consegue deslaçar e vossa excelência acredite que só consegue fazer as pazes com o travesseiro que acolhe o sono se continuar a exalar a misoginia criminosa. É criminosa, porque vossa excelência dá guarida aos criminosos que se servem da força bruta para maltratarem as consortes, na absoluta negação do laço que outrora fora cimento dos cônjuges, figurando ao lado dos violentos e contra as vítimas, alinhando com a bestialidade própria dos que usam a razão da força. Vossa excelência não vive no tempo dos homens das cavernas. Não são as donas meros ornamentos para alindar a existência de varões bem (ou mal) assinalados. Não creia vossa excelência no acosso dos deuses de antanho e liberte as amarras para a contemporaneidade que devia ser o seu chão. Desprenda-se dos mal resolvidos enigmas com o sexo feminino. 
Se vossa excelência persistir num comportamento a preceito de um homem das cavernas, não se abespinhe (nem lhe seja cometido o impulso de desatar a processar a eito) se alguém lhe disser que é um homem das cavernas. Pois o muito pequenino mundo que habita na cabeça de vossa excelência é o mundo que outrora foi albergue dos homens das cavernas. Quem pensa e atua como homem das cavernas não pode destinar à infâmia o epíteto de homem das cavernas. Sacuda a toga, puxe lustro às medalhas da soberania que não se cansa de exibir, ponha o conjunto a arejar. Por uma temporada demorada. E já que é dado às sacristias, peça auxílio a um cura que o cure da maligna intumescência que retarda o pensamento. Aproveite o sabático interstício e leia os fundamentos da filosofia do direito.
Vossa excelência tem todo o direito a ser um homem das cavernas (bem entendido). Todos precisamos de homens das cavernas. Como curiosidade arqueológica. E porque a coutada onde persistem os homens das cavernas é um bem inestimável: na dúvida, é só observarmos o habitat para sabermos os antípodas em que devemos estar. Vossa excelência excluída.  

Sem comentários: