3.4.19

“Eu sou tão importante, e o meu conhecimento é tão enciclopédico, que até me convidam para verbetes de enciclopédias”


Explosions in the Sky, “Colors in Space” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=6Qss7J4HfR8
Continuação do discurso direto na primeira pessoa do singular:
Acordei cheio de orgulho. De mim mesmo. Há proezas que não estão acessíveis a qualquer um. Por exemplo: escrever verbetes para uma enciclopédia. Logo, eu não sou qualquer um. Posso dizer que sou de excecional cepa.
Um sinal do reconhecimento devido: o convite para engrossar as fileiras dos que discorrem conhecimento. As enciclopédias são o lugar onde se armazena o saber enciclopédico – ou não tivessem elas este nome. Quem para elas contribui usufrui um estatuto de alguma sapiência – o convite retrata o reconhecimento desse estatuto. Ninguém imagina um néscio a ser requisitado para dar o seu contributo para uma enciclopédia. Seria uma contradição de termos (a menos que se tratasse de uma enciclopédia de não saberes, ou de saberes adulterados). 
Os sábios de alguma ciência são chamados a participar em verbetes de enciclopédias e, nessa medida, são pessoas importantes. Parece que é importante ser uma pessoa importante. É só frequentar o meio para o apreciar. Os importantes que se autoconsideram sábios não perdem a oportunidade para exibir os pergaminhos, numa ostentação nunca modesta do lugar a que se alcandoraram. Como se não fosse suficiente, ainda puxam lustro às medalhas que garbosamente exibem. E ficam à espera de reconhecimento dos outros. Lá poderiam perder oportunidade de reivindicar o reconhecimento que lhes é devido, eles que tanto deixaram para memória futura na forma do conhecimento que legaram ao conhecimento.
Convém acentuar: para memória futura: nos verbetes selados na enciclopédia fica emoldurada a peça de sapiência que só um sábio, autorizado a colaborar numa enciclopédia, pode deixar como produto da sua fecunda lavra. Será saber enciclopédico. Convém baixar a guarda nas ambições. O saber só é enciclopédico quando soma todos os verbetes da enciclopédia. E convém não esquecer que estas enciclopédias são parcelares, mostram apenas uma dimensão (das muitas que existem para mostrar) do conhecimento. Termos em que os verbetes deixados em memória futura são apenas uma cotização mínima no todo do saber enciclopédico. Não será suficiente para alardear um estatuto que, assim exibido, peca por excesso.
Convém baixar a guarda. Estou convencido de que um punhado de verbetes numa enciclopédia converte um módico de conhecimento. Não é razão para jactância, ou para orgulho desmedido. Afinal, o orgulho que acompanhou a alvorada era uma embriaguez estulta. As entradas para uma enciclopédia são o modesto apetrechamento de um conhecimento enciclopédico. Os enciclopédicos não merecem as alvíssaras que reclamam. Para não se deslumbrarem com o estatuto, descuidando o flanco por onde tem fuga o conhecimento vertido, mas não no pleno sentido do rigor. Para não se atraiçoarem como mediadores do conhecimento, enquanto se entretêm com internos pleitos onde se joga a vaidade.
Sou enciclopédico. Um modesto papel, como qualquer outro. Afinal, não sou importante. E deito-me sossegado.

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