23.4.19

Os filósofos nunca riem – e outros mitos que tais


Tom Waits, “Hold On”, in https://www.youtube.com/watch?v=WPnOEiehONQ
Dizem: os filósofos coabitam com as sombras, têm medo dos dias solares e enfeudam-se em torres de cristal opacas, por sua vez estruturadas em labirintos sucessivos de onde não é possível sair sem ser apoquentado ou pela loucura ou pela ininteligibilidade de tudo. Dizem: os filósofos nunca riem: aparecem em público sorumbáticos, compenetrados na cornucópia de pensamentos que parece ter o dom de lhes subtrair qualquer vestígio de sorriso. Os filósofos nunca riem e por assim ser (também) se marginalizam do entendimento comum. 
Dizer que os filósofos não riem serve de pretexto para terem poucos amigos. Porque têm cara de poucos amigos. Não passa de um pretexto. Há filmes e peças de teatro em que atores há que não esboçam qualquer sorriso, passeando na tela ou no palco uma antipatia manifesta. E, ainda assim, há quem os considere charmosos na exata medida do carisma que transportam. Mas aí só vale uma imagem distante que paradoxalmente parece atrair algumas pessoas, como se apenas se equacionasse os efeitos imediatos de uma imagem tingida pelo mistério. Os filósofos não são diferentes (a não ser no hermetismo do que dizem e escrevem, sobretudo para os poltrões do pensamento). Mas poucos se sentem atraídos pela faísca misteriosa que também existe nos filósofos, talvez por, ao contrário dos atores que sobem a palco ou passam na tela, vaguearem nos carris da fealdade.
Enuncie-se a hipótese de os filósofos taciturnos ser apenas uma hipótese de trabalho, impossível de atestar por não haver registo de quem conviva vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, com filósofos. Quem pode assegurar que os filósofos, invariavelmente retratados com rostos fechados e até ameaçadores, não esboçam um sorriso para a empregada do restaurante que os serve, para a senhora da lavandaria que lhes devolve a roupa agora lavada, para o taxista que os leva à universidade, para a criança que os interpela no banco do jardim enquanto estavam afogados na leitura de um livro irresistível? Quem pode assegurar que os rostos dos filósofos estão destreinados do sorriso e que essa é a caução da filosofia de que são autores?
Mutatis mutandis(como dizem os juristas): alguém pode garantir que uma estrela da televisão, daquelas que ostenta um sorriso largo e perene enquanto o rosto está sob a coação da câmara que o filma, exibe o mesmo sorriso fora da televisão? É um sorriso perene – ou apenas é perene (e assim relativizado) quando as exigências do fingimento que são preceito necessário do mediatismo convocam o seu empolgante sorriso?
Os filósofos estão nos antípodas dos famosos da televisão. Não banalizam o sorriso nem ornamentam a simpatia com os predicados do fingimento. E porque nunca desaprendem de aprender a pensar, sendo eles, num certo sentido, penhores do pensamento, que com mais humildade admitem o tanto ainda que o pensamento tem para lhes ensinar. É admissível que, enquanto o façam, ocupados nos interstícios do pensamento, não conduzam as sinapses aos mecanismos físicos que ativam o sorriso. 

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